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Ele diz que não, mas é fácil acreditar que os tenha fechado antes da hora. Porque é sábado e a luz de inverno deixa adivinhar o fim de mais um dia de trabalho, qualquer pessoa pode cair na tentação de o antecipar.
"O diabo do homem, fechou-nos os portões!"
Senti aproximarem-se os passos miúdos de uma mulher que vinha no meu encalço. Deixou cair a frase ao passar por mim e redobrou energia em direção à saída.
Sucessivos caminhos apagados, têm sido acrescentados a um mapa que me obriga a ir cada vez mais longe. Com o tempo, tenho aprendido a movimentar-me neste labirinto. Não esperava que chegasse tão cedo, a minha vez de cumprir o ritual das homenagens. Houve um tempo em que podia garantir que nunca o faria, mas a vida corre a par com o tempo, tendo uma única garantia. Para que não me tremam as pernas à chegada, nem tenha de me arrastar no regresso, solto o corpo de azáfamas sem justificação, mantenho a cabeça desatenta a significados profundos e esvazio a boca de palavras. Evito os nós, para não tropeçar a cada passo.
Experimentou o trinco, abanou o portão e confirmou o que, à partida parecia evidente. Vendo-me parada e calada, achou que me devia explicar a situação.
"Estamos aqui fechadas! Ainda não percebeu?!"
Eu já tinha percebido, mas não me apetecia responder. Ela também não esperou resposta. Atirou-se aos portões, batendo com os punhos. Não achando suficiente o barulho produzido, largou o balde que trazia na mão, e usou o cabo da vassoura para lhe cascar com quanta força tinha, ao mesmo tempo que chamava por ajuda.
"Venham abrir! Venham abrir!"
Talvez não contasse que o auxílio estivesse tão próximo e lhe valesse tão rápido. Vindo de uma das arrecadações, limpando a mãos a uma toalha, aparece o homem que nos poderia franquear a passagem. Estava, provavelmente, a lavar-se, dando por finda a jornada. Ainda antes de dar atenção a toda aquela algazarra, cumprimentou-me, com um ligeiro aceno de cabeça.
Não me incomoda que me reconheça, mas perturba-me que saiba os meus percursos por dentro. De alguma forma é um dos nós que tenho dificuldade em desatar.
"O que é que se passa aqui? Para quê tanto barulho?
"Então você fecha os portões, sem chamar? Sem tocar o sino!?"
"Mas qual sino, senhora? Aqui não há sino! Tem o horário do outro lado. Ao sábado fecha às cinco!"
E começa uma pequena discussão sobre obrigações e horários, competências e distrações. O problema, que se resolveria de forma rápida e simples com a abertura dos portões, foi sendo esquecido para dar lugar a uma disputa pela conquista da razão.
Não tinha a menor das intenções de intervir, e não me restava senão aguardar.
Estiveram nisto um bom bocado, sem que se chegasse a conclusão nenhuma.
"Havemos de cá ficar todos"
"Hoje não, mas quando chegar a sua vez, cá estarei para a receber!"
"Insolente!"
Esta troca de palavras iria alimentar indefinidamente a disputa, foi o que pensei. Enganei-me.
Ela apanhou o balde, cruzou os braços e virou-lhe as costas.
Ele encolheu os ombros, foi buscar a chave e abriu a passagem.
Inscrita na pedra que remata os portões, de ambos os lados, pode ler-se a mesma frase
"Mors, Ultima Ratio"
Deve querer dizer alguma coisa.
Conheço-a há muito tempo mas só lá apareço duas ou três vezes por ano.
Devo ser a sua pior cliente.
"Ao sábado trago-a comigo para aqui, sempre areja um bocadinho…(senta-te nesta, que já está desinfetada)… durante a semana deixo-a no centro, mas já se sabe, com isto tudo a acontecer, anda uma pessoa com o coração apertado…"
Está sentada ao fundo, por trás de nós. O espelho inverte a posição e coloca-a à nossa frente. É só um reflexo mas está à nossa frente.
"...faço o que posso por ela, mas não chega, eu sei... nestas coisas sou sozinha, tenho a minha irmã, mas não se pode contar com ela... agora é que eu a percebo... (estavas mesmo a precisar de cá vir)... quando dizia que não os queria porque não se sentia capaz para assumir essa responsabilidade e mais isto e mais aquilo… (então, como vai ser?)… não quis filhos que a prendessem e agora também não se quer prender por ser filha, é o que é…"
Vai espalhando tesouradas rápidas na nuvem que faz chover cabelo à minha volta. Sabe o que faz e sabe preencher silêncio.
"...agora é que eu percebo, sabes… quer a sua liberdade, mas com a responsabilidade não quer nada...(mais um bocadinho nas pontas, não?)... do meu irmão já nem falo...vive cheio de compromissos, não tem tempo...um telefonema nos anos, outro no Natal…mas queres saber a melhor? diz que é homem, que estas coisas são com as filhas, que se for preciso ajuda com as despesas…"
Lá ao fundo parece-me ver um encolher de ombros resignado, mas deve ser só impressão minha, porque tirei os óculos para facilitar o trabalho. Eu, sem eles, vejo o que quero.
"...acredita, que isto me custa e nem é por mim que me queixo, é por ela que ali está... criou-nos a todos, aturou-nos as manias, passou sacrifícios para nos ajudar a começar a vida… e ainda tomou conta do meu pai até ao fim...(vamos secar?)... e olha que ele não era fácil…muito trabalhador, muito sério e amigo do seu amigo, mas isso de era da porta para fora porque em casa… se tu sobesses…"
O secador é um aparelho barulhento que abafa conversas e me transtorna as ideias. Não gosto de secadores.
"... e agora que já não pode, quando lhe falta a saúde...bem, isto agora, com médicos e comprimidos sempre se vai tratando do corpo, para a cabeça é que é mais complicado…"
Ouve, quieta e calada, como se não fosse ela a pessoa de quem se fala.
"...e cá dentro dói sempre… (até pareces outra, quando chegares a casa nem te vão reconhecer)...cá dentro dói até ao fim..."
Ingenuamente olho o espelho, à espera de não me reconhecer.
Senta-se na beira da cama. A mão a contornar a cabeça, da testa até à nuca, para depois reproduzir o arco nas costas. Os braços apoiados nos joelhos afastados, as mãos suspensas
Tudo passa ...
a baloiçar, até os dedos se encontrarem. Avaliados com cuidado, um a um, que cada um é único, são ordenados na ordem a que não podem fugir.
Pouso a mão no seu ombro e ajoelho-me a seus pés ...
Fazemos contas à vida?
para poder ser o chão que pisa.
Ergue a cabeça, sorri
Dedo mindinho,
seu vizinho,
pai de todos,
fura bolos,
mata piolhos,
Estão feitas as contas...
Depois rimos. Rimos muito e com vontade, com prazer, com dor, com medo e com raiva. Sem certezas mas a saber que tudo passa.
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