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Fim de tarde, pôr do sol, esplanada à beira mar. Fauna e flora, folclore.
Passado um ror de cerveja, quando o chão em torno da mesa era já só cascas de tremoços e amendoins – Deixa estar, que é biodegradável – deu-lhe para intervalar brevemente a modorra, com matérias mais profundas – Agora é que isto vai mudar! O empregado vem buscar os copos vazios e dá-lhe corda, – Então, porquê? – porque não tarda acaba-se a louça atrás do balcão. Pausa estratégica, – Eu já te digo… – com a língua a estrebuchar por todos os cantos e recantos da boca, sem que se perceba, se o interregno serve para preparar a oratória, ou – Os amendoins são tramados! – para fazer higiene oral. Com um gole, aclara a garganta, e de seguida acende o cigarro que o vai acompanhar na divagação – Vamos ter os patrões na palma da mão! O compincha estremunhado, dá um salto que faz estremecer a mesa – Omessa! – e o barista revira os olhos, enquanto enxogalha os copos, no alguidar – Vai começar! – E foi de rajada:
– Já ninguém consegue criar filhos, somos cada vez menos a trabalhar. Os velhos estão cada vez mais velhos, e não podem. Dos novos, quase tudo tem canudo, têm que receber o justo. O que não ganharem aqui, vão ganhar lá fora. Os que têm poucos estudos, dizem que dar no duro por um prato de sopa, sem sequer arranjar onde morar, "não quero isto p'ra minha vida", e vão-se embora também. De maneira que, mais dia menos dia, hão de querer quem meta as mãos na massa e suje as unhas, pessoal da ferrugem que se sujeita como nós, e não têm ninguém. Começam a dizer que não falta trabalho, mas não há quem queira trabalhar. Paguem em condições, dêem valor ao trabalho e não se esqueçam que a gente também é gente, e aparece logo quem trabalhe! Porque não podem, porque a situação está difícil, que primeiro têm que ganhar para depois poderem pagar, e tal e coiso. Usam o nosso o nosso trabalho como se fosse um banco, e quando corre bem, esquecem-se de pagar juros, quando dá para o torto " adeus, ó vai-te embora, vem outro para o teu lugar". Mas cada vez somos menos, de maneira que está a chegar a hora em que se quer, paga, se não quer, ponha as notas a fazer o serviço! Vocês vão ver…
Vira-se para trás, ergue o copo, roda à esquerda e à direita, para localizar a audiência – À nossa! – e emborca o último trago. Limpa os cantos do sorriso e lança a beata ao chão, – Vai apanhar, que é biodegradante! Dá o devaneio por terminado e desafia o comparsa na disputa – São dois finos e uma empalhada! – para apurar o campeão, que cospe mais longe, os caroços de azeitona – Grande javardo! Acertaste na chávena da senhora!
A boca da barra sorri.
É Domingo.
De novo começa a semana, já sem Maio bastante para a preencher. Esgota-se o tempo, sem que se cumpra a promessa de água.
Depois da missa, o adro está coberto por um dossel de veludo cristal estofado nas nuvens, que rangem e roncam antes de estourar como foguetes. Nem um borrifo que chegue das alturas, para acamar o pó solto nas corridas das crianças ao sair da igreja. Dizia o pai de Isabel, por ter ouvido no sermão, que chuva em Maio é sinal de boas águas. Estaria a saudar a chegada do Inverno noutras paragens, e nós por cá caminhamos para um sempre Verão. A luz densa, coada pelo chumbo de ameaça líquida, é sinal, mas só sinal, sem águas, nem sermão. Falta água e dessa falta se inquieta o futuro, nas conversas saturadas do opressivo calor. Queixam-se vozes arrastadas em gargantas secas, das cefaleias presentes, trazidas pelo insustentável peso do ar. Da pressão, da carga elétrica, da enorme consumição de não ter água, se lamentam.
Abeira-se à porta o prior, para despedir os fiéis na cerimónia do envio ao almoço dominical. O céu torna a rugir e do alto respinga uma gota gorda. Escorrega duvidosa na testa, talvez um bago de suor. E logo outra, e outra, e outra a fazer diluir as gentes estagnadas no adro. Almas penadas e pingadas, à procura de abrigo, por ter chegado a bendita água. Água sólida e redonda, vinda do céu. Sem demora, se vai maldizer o chuveiro de berlindes.
Assim é o Domingo.
Quando cheguei lá cima, a porta estava aberta, mas ninguém para me receber. Já lá vai o tempo em que fazíamos cerimónia. Fui entrando. Na sala, nada, na cozinha, ninguém, na casa de banho bati, sem resposta. Com os estores corridos e a luz apagada, só podia estar no quarto.
– Estás doente!? – perguntei.
– Hum, hum!
– Sentes-te bem? – para confirmar.
– Hum!
– Estás chateado?– silêncio.
Vou às apalpadelas até à cama, e não é que o homem estava enfiado por debaixo de cobertores e lençóis, todo vestido. Calças, sapatos, camisa e gravata já com duas voltas ao pescoço, enrolado como um recém nascido contrariado para nascer.
–Anda cá, que te dou mimo! – nem sequer se mexeu.
Está bem assim, amuar também faz falta.
– Mas olha que é um passo atrás e dois à frente! – nada.
– Tu ouviste!!!?
– Hum!
"E se o monstro vier?"
"Garanto que não vem. Falam por falar. Se ninguém o viu, é certo que não existe!"
"Mas se sem existir, vier?"
Os monstros que não existem, são os da pior espécie…
Engendravam-lhe os mais comoventes enredos: segredos ocultos de um louco amor proibido, frutos perdidos ao nascer, flores arrancadas à vida em tenra idade, esperanças desfeitas, desmanchos involuntários ou forçados.
Aconchegava o pano da louça com doçura, embalava sussurrando baixinho para nanar. Se pediam, mostrava primeiro o sorriso, depois a boneca desgrenhada, zarolha e suja, que criava ao peito.
Dos novelos que dobavam, só o seu bebé era real.
…tinha esquecido, mas sei bem que são.
"Basta chamar e virei eu, para lhe dar tantas, tantas, tantas, que se há de arrepender de ter vindo, de ser monstro e de existir!"
As coisas que me passam pela cabeça!
Cara Maria José… (é melhor, não. Vai pensar que é uma piada de mau gosto ou que lhe estou a regatear os honorários. Embora seja sempre tão solícita a oferecer os seus préstimos, não pode deixar passar a oferta sem que seja justamente remunerada. Se é do corpo que lhe sai o sustento, só faltava que não se fizesse pagar, e bem. Não quero melindres, nem isto é maneira de começar uma conversa. Parece coisa de carta, e quem escreveu a carta foi a outra. Entre ela e a outra, comum é o nome. Não só o nome, talvez, mas se muito importa o nome que nos dão, mais importa o nome que queremos. E se digo ela e for ile ou elu? Não sei ler elx. Já nem sei ler… estou perdida na gramática. Vejo-me à rasca para escrever e agora até a falar me ensarilho. Tenho a sensação de estar a caducar e assalta-me a certeza de em breve me tornar obscenamente ultrapassada nas palavras. Atormenta-me ofender, tanto quanto a possibilidade de vir a ter medo de dizer. Ficar sem voz, calada por medo… para o que eu estava guardada!)
Amiga Maria José… (mas amiga de quem, há-de pensar ela. Bom dia, boa tarde, isto e aquilo e mais o tempo, saúdinha, passe bem. Não há cá confidências, nem intrigas, conversas banais, nada ilustradas. Não me passa pela cabeça falar-lhe do "heterónimo feminine". Ainda esfreguei os olhos duas vezes, mas não é gralha nem miopia entranhada. Sou eu a entrar em declínio. Eu é que sou um asno, ou uma asna mal travada, que suporta a madre "reprodutora da norma". Coisa linda, estas imagens! Não me atrevo a questionar o género de Antónios que lhe passaram pela vida, nem dos serralheiros bem parecidos que namora. Esses conheço-os eu bem, ajudantes, oficiais, encarregados fluidos para me fazerem a cabeça em água ou de fibra neutra para me deixarem a obra em águas de bacalhau. Que se deve perguntar e não me atrevo… a mim ninguém perguntou nada: faz-te homem, mulher , o que é que custa?)
Ó Maria José… (vai-me mandar à erva, é quase certo)
Tinha decidido que não me metia nisto. Não sou de dar conselhos, mas vendo bem é só uma cantiga.
Para desopilar o fígado, podem ver o filme completo.
As fotografias perderam corpo e os álbuns volumosamente palpáveis, caíram em desuso, mas ainda pesam sobre os joelhos, ao virar de cada página.
Esse foi o tempo do impulso e do improviso.
Acordar com o sol a pino, curar a noite ao som da rádio, ganhar balanço de música em música, até que alguma notícia fizesse saltar da cama – E quem as fosse ver, antes que as afoguem?
Nem planos, nem bagagem ou reservas. Nada! Do trajeto, nem um rascunho alinhavado, e até o mapa era escusado quando a vontade chega e sobra. Leva-se a máquina para guardar o que se viu e basta – Vamos subir aos montes!
E fomos, por novas estradas curtas e longos caminhos velhos, sabendo que no cangalho que nos levava, tudo demora. Virar costas ao mar era custoso, contudo aceita-se pôr freio à urgência de chegar, por condizer com a aventura de descobrir um destino mais que remoto no espaço e no tempo.
A noite cai cedo em dias curtos de Outono, e quando por fim se pode dizer, terra à vista, não há pelas ruas vivalma para ver ou a quem perguntar. O lugar pacato, fora de horas, obriga a deixar o plano para o dia seguinte, mas não sem antes tratar do estômago. Terá sido no "Volante", ou no "Travão", ou coisa que o valha, que pelo nome até parecia predizer que a noite se vai passar no carro, por não haver onde ficar. Se tem de ser, será, que não nos demove o relento da serra e até se lhe pode juntar a poesia de adormecer com o parabrisas salpicado de estrelas ou ajudar na alvorada.
Ainda é pouco mais que madrugada, e para investigar o rumo exato, faz falta a quem perguntar. Lá estava a providencial avozinha que anda aos gravetos para acender o lume – Vindes ver os riscos? Ide por esse caminho a riba, e é do outro lado abaixo. Mais, não sei! – era pouco, mas já era um começo.
Chegados ao cume, umas quantas tendas e um caçador, que prontamente declara ter ficado de guarda por não ser apreciador de caça. Vem pelos bons ares, pela paisagem, pelo convívio, pela comida e pela bebida, e vem connosco também, se lhe dermos boleia.
Todos juntos, encosta abaixo, esperava-nos muito solavanco, no caminho estreito de terra batida. Nada que atrapalhasse os planos de descer ao fundo do tempo. Não contávamos, porém, ser perseguidos com buzinadelas a reclamarem ultrapassagem. No retrovisor, uma imensa nuvem de pó ganhou a forma de um destemido cavaleiro montado numa acelera tresloucada. Passou-nos adiante, com tanta ligeireza no andar e tão grande desprezo pelos predicados rudimentares da via, que a espaços curtos, derrapava e ia ao chão. Com toda a cautela para não o atropelar, acabamos por chegar ao destino, praticamente em simultâneo. Após abrir a vedação e picar o ponto, o alvoroço serenou e o rapaz recolheu ao contentor que lhe servia de guarita. Entretanto, aproveitando o caminho aberto, tratamos de entrar para investigar as tão valiosas pedras. A bem da verdade, não faltavam penedos, mas por muito que fosse o empenho na busca, dos riscos nem rasto. Aos primeiros sinais de cansaço, somaram-se os brados do rapaz. Por conta de uma farda mal enjorcada, tinha se tornado no segurança de guarda ao tesouro – Nem pensar! Zona interdita! – Não podíamos transpor a vedação, muito menos tirar fotografias a pormenores – Podem procurar do outro lado do rio!
Atingiu-nos forte, aquela evidência. Não seriam necessários mais do que uns breves minutos de ponderação, para saber que não as iríamos nunca descobrir.
Não fosse o feliz acaso – Olha aqui um porco! E está assinado! – do nosso mais recente amigo ter feito o achado de um animal. O caçador renegado, por instinto, não tardou a disparar.
Sobre como conseguimos conquistar a simpatia do segurança e nos foi possível viver a experiência única de encontrar as gravuras, nada se pode acrescentar. Prometemos solenemente, não atentar contra o património nem revelar a transgressão.
Fica o registo, em papel e na pedra, do porco assinado.
Por ser sempre tão atento aos meus desejos e condescendente para com as minhas vontades – talvez até um pouco permissivo nos caprichos – era difícil compreender aquela recusa definitiva e incontestável.
Não se abre!!!
Eu argumentava com razões que me pareciam evidentes. Fazia parte do pedido de notícias, das saudades e dos beijinhos, nas costas do postal. A possível nota de vinte escudos para ajudar à compra dos patins, estaria à minha espera entre as duas folhas da carta perfumada. Se fosse uma daquelas encomendas que o Sr. Fernando trazia no fundo do saco de couro, podia contar com os caramelos embrulhados no papel Kraft, ou quem sabe, com a camisola tricotada. A avó nunca se esquecia de mim.
Protestava a injustiça, pedia justificações.
Não tem o nosso nome no destinatário, não abrimos!
Toda a intimidade é inviolável. A correspondência entre mãe e filha, ainda que inclua a neta, também.
Para não me ver triste, dava-me abraços e beijos, ou cinco escudos para pôr no mialheiro, ou uma sombrinha de chocolate e prometia que íamos os dois aprender a tricotar. Ficávamos à espera que a mãe voltasse na sexta-feira, para revelar o que era dela.
Ensinava-me o respeito, mas sem querer que eu soubesse que repudiava um direito. Talvez, por o considerar de tal forma aberrante, nunca quis que o conhecesse.
Não tenho foto e dá-me muito mau jeito dizer raiVas, desculpem. É assim:
Ingredientes
Preparação
Fazem-se ao serão, depois da cozinha arrumada. São rijas e doces. Se quiserem tentar, espero que gostem, como eu gosto.
Nicolau, recolhido no claustro, esconde-se no canto. Descobri-lo na sombra faz barulho, prejudica a saúde dos doentes que devem descansar em silêncio, para não serem mais doentes. As crianças saudáveis que correm e gritam de excitação à vista de um pinguim, não devem abandonar o recreio e procurar o Nicolau. Visitá-lo em saúde é transgredir, tanto como sujar a bata branca no adro da escola dos rapazes, em brincadeiras despropositadas que justifiquem a visita.
Como rasgaste os joelhos?
A saltar da estátua do bombeiro!
Embora lhe censurem a forma de tentação infantil, desrespeitar a gravidade do bombeiro desagrada aos crescidos.
Menina feia!
Álcoois e tinturas, compressas e ligaduras tratam feridas, mas a potência máxima do poder curativo, capaz de secar lágrimas e extinguir queixumes, pertence ao Nicolau.
Posso vê-lo?
Se o Senhor Nicolau, tivesse chegado a médico, bem poderia tratar os doentes todos e os joelhos também.
Ir buscar o livro e pousá-lo sobre a mesa, deixar as mãos pousadas a seu lado, impedindo que o dedo guie as letras, é o começo. Afinar a voz para que saia constante e clara em voltinha transparentes de emoção, desagrava as ofensas involuntárias. Desgostar os crescidos que têm que nos amar, assusta.
Ler tudo sem soletrar e terminar com um suspiro e um sorriso, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e os olhos brilhantes de satisfação.
Linda menina!
Só falta mesmo o remate esmerado da inocente astúcia infantil, em tom doce de questão curiosa.
Como é Nicolau, em latim?
Mas sem falar da caixa. Os crescidos não gostam de explicar a caixa. Falam de voar para o céu e outras coisas sem sentido. Atrapalham-se, por nunca terem descoberto que ao afagar a brancura gordurosa do peito do Nicolau, o fazem agitar asas de Arcanjo, Miguel, poeta e escritor, ou pinguim. Se for doutor, trata joelhos rasgados.
É Nicolaus!
Como se fosse plural. É então, muito bicho igual a todos os bichos que juntou.
Depois, fica tudo perdoado.
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