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Em madrugada escura, quase inverno, desperta ao lado de uma duvidosa dama de pés gelados, que sem cerimónia lhe enrodilha os lençois. Estremunhado, demora a reconhecer um certo estafermo que, desde algum tempo, lhe anda a morder os calcanhares e com quem não quer conversa. Deixa-se ficar deitado, aconchega a manta ao pescoço, guarda uma das mãos sob a almofada, a outra entremeada nos joelhos, e vai com a ponta do pé a roçar nas asperezas do lençol para tentar devolver-lhe a lisura. Tem o sono perdido, espera, pelo menos, recuperar o calor do colchão. Pōe-se então a cismar se, a meio caminho entre os setenta e os oitenta, não teria já idade suficiente para reclamar o direito de ser velho. Aos olhos do mundo apresenta-se em primeiro lugar a imagem, e por isso espelha no pensamento a pele enrugada, o cabelo ralo e branco, as costas curvadas. Com redobrada atenção, mira tudo o mais que lhe parece ser sinal inequívoco à vista de todos, sem que lhe pareça suficiente, Não chega… Pela figura, já conquistara o título, mas para poder aspirar ao direito de ser velho, era escasso. Vem-lhe depois à ideia, trazer as maleitas a seu favor. Talvez um atestado, a certificar o colesterol, ou as cataratas ou nem que fosse o catarro, o tornasse velho por direito, Talvez… mas, pensando melhor, tal documento, a existir, só lhe traria problemas. Num acesso de rigor, podiam declarar-lhe falhas de memória, distrações, uma ou outra pequena confusão. Daí a perder o direito de usar a sua própria cabeça, era um passo, sabia-o bem. Para ganhar um direito, perdia outro. Resolve dar a volta, e vira-se para o lado do sentimento, arrastando consigo o cobertor das angústias. Mas no lugar vago, guardado para a solidão, já se tinha aninhado de novo, o raio da bicha, que só de cabeças tinha muitas, (como a de Silvalde) a ensarilhar-lhe a viuvez, com as dores nas articulações e outros desgostos, grandes e pequenos, que de momento não tinha lembrança de quais eram. Que atrevimento! Nem na cama, um homem pode ter sossego! Teria de pedir autorização? Como tudo o que é demasiado grande, a questão deixa de lhe caber na cabeça, escorre para o estômago, como azia, e acaba por lhe sair pelos pulmões, em alto e bom som, a ecoar pela casa, POSSO SER VELHO?
Do quarto ao lado, a mãe que nunca dorme, e só fala durante o sono, responde num fiozinho de voz, Ainda não!
Miolinho pão de leite, luz dos meus olhos,
Artificial, é a rosa de plástico, flor a fingir, e nem o fingimento ou o plástico a impedem de ser rosa melhor à vaidade dos olhos do criador. Ser pai e senhor do artifício, não retira ao fogo o ardor. Sossega o artífice, até que lavre o incêndio na mata do sentir. Se depois, incapaz de se conter, a chama lhe devorar a suprema rosa do sentimento, vai dizer amor artificial?
Bolachinhas, leite morno, meu tesouro, não vás por mim, que nada sei e só me engano.
Vamos dormir, até amanhã!
Opinativos opinantes,
fazedores de opinião pública?
Engolidores de público seguidor de opinião?
Quanto mais ecoam, mais cresce a espiral...
Mas que raio, é um opinador?!
... e o silêncio avança!
Estou a olhar para os dedos dos pés. São dedos de menina. Pequenos e redondinhos, brancos, suavemente rosados ao redor das unhas, como gotas de água pura, em pálidos tons de rosa. Pousados ao fundo da cama, descansam de tanto correr pelo tecto. É um tecto sem idade. Grande e rectangular, branco, ligeiramente cinzento junto aos cantos, como espelho de água parada, em deslavados tons de cinza.
Estou a olhar para os dedos dos pés com os olhos de mulher que correu mundo no tecto do quarto, enquanto menina. Pergunto-lhes, quanto os marcou o isolamento, quanto lhes doeu a caminhada da cura?
Destes dedos dos pés de menina, eu mulher e o branco tecto, sabemos agora o que então sabíamos:
Querem tocar o chão das outras crianças e correr no mundo delas.
O tempo em que se forma o entendimento é o princípio da escolha das coisas que se querem entender...
Sem altura para mais, nivelava o olhar pelo mármore branco. Pupilas dilatadas e olhos salientes, cruzam-se no mesmo plano castigado pelo sal e pela lixívia, onde desemboca a madrugada que se despeja dos cabazes e caixas de madeira. Neste mar sem água, boia ainda um suave ondular de vida que se vai apagar no contraste da azáfama.
Do outro lado, mãos a amanhar o vermelho sangue na guelra, que narizes atentos escolhem e desdenham para melhor regatear ou peso ou o preço, escamam e cortam, escalam a carne firme e tornam a apregoar.
Translúcidos reflexos fazem eco, e por todo lado se ouvem vozes no tom metálico que tem o sabor da maresia. É tomar sentido nas coisas e descobrir, e pelos sentidos o que elas são.
Dez réis de gente é o bastante para compreender a fronteira. O sacudir das escamas, o subtil entreabrir das conchas, o deslizar de tentáculos viscosos, ou o estremeço ligeiro de finas patas e fortes pinças, não são mais que despedida, gelo a derreter.
Depois, a contrariar a quietude do fim, as enguias têm que se perceber de outra maneira – ou então nunca.
Mais tarde se poderá revelar o mistério desfeito da geração espontânea, o enigma da metamorfose ou a épica viagem entre águas salobras e salgadas. É para isso que servem manuais e compêndios, mas quando se aprende o escorregadio serpentear um ser estripado, que se contorce para além da vida…
O entendimento é uma escolha?
Passo e leio no passeio
paro e penso heróis
não sou nem sei
se fugir é verdadeiro
é o pecado ficar?
O dia já é meio,
a outra metade caminho
Ligados pela metade,
desunidos os passos no andar,
Juntos o vagar do dia
e a pressa da razão,
não lhes importa a estrada,
querem saber onde estão
O que sabem é metade,
meia certeza do saber
Adiante o mar poente,
reverso passado do nascer
A direito lhes sopra a estrela,
do outro lado coração
não lhes importa o que os move,
querem saber onde estão
E o que dizem os sinais?
8730
Querem saber onde estão…
Quanto tempo em cima do muro?
Tanto viver equilibrado, inseguro
onde o deixaram ficar,
ficou
quieto, esquecido ou garantido
Vira o vento,
virou, caiu, tombou
Ainda lá podia estar…
Se houvessem
deuses que sorrissem,
ou criada a quem culpar
Por mor de se aquebrantar
o basaréu de bidro,
quem iremos acusar?
Forte Muro, falta-te força, sobra-te a sombra
É a mim que queres ouvir?
Guardaste com fogo a fraca fronteira
da casa caída
Agora,
receias ruir...
Foste frente caiada, cal viva
na parede suja e esquecida
Agora,
atormenta-te o porvir...
Foste barreira, muralha erguida
no erro de temer errar
Não temas agora perguntar
O que pode a paliçada
que não se pode transpor?
Pode o tempo, pode a vida?
Pode abrigar o amor?
Fraco Muro, se me ouves,
não esperes ouvir por mim,
as respostas que procuro, mas não tenho
Sou só perguntas sem fim!
Não sei porque motivo me lembrei desta palavra, mas não a consigo declarar inocente de sentido duvidoso.
Por um lado, esconde-se na neutralidade, e tanto promete recompensa como ameaça castigo, mas há nela qualquer coisa que me faz lembrar o calculismo de um jogo.
Por que se isto é um jogo, já ouvi dizer que todos podemos ganhar se ninguém quiser ganhar.
Pode a soma ser diferente?
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