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Posso?

por esquisita, em 08.12.24

 

Em madrugada escura, quase inverno, desperta ao lado de uma duvidosa dama de pés gelados, que sem cerimónia lhe enrodilha os lençois. Estremunhado, demora a reconhecer um certo estafermo que, desde algum tempo, lhe anda a morder os calcanhares e com quem não quer conversa. Deixa-se ficar deitado, aconchega a manta ao pescoço, guarda uma das mãos sob a almofada, a outra entremeada nos joelhos, e vai com a ponta do pé a roçar nas asperezas do lençol para tentar devolver-lhe a lisura. Tem o sono perdido, espera, pelo menos, recuperar o calor do colchão. Pōe-se então a cismar se, a meio caminho entre os setenta e os oitenta, não teria já idade suficiente para reclamar o direito de ser velho. Aos olhos do mundo apresenta-se em primeiro lugar a imagem, e por isso espelha no pensamento a pele enrugada, o cabelo ralo e branco, as costas curvadas. Com redobrada atenção, mira tudo o mais que lhe parece ser sinal inequívoco à vista de todos, sem que lhe pareça suficiente, Não chega… Pela figura, já conquistara o título, mas para poder aspirar ao direito de ser velho, era escasso. Vem-lhe depois à ideia, trazer as maleitas a seu favor. Talvez um atestado, a certificar o colesterol, ou as cataratas ou nem que fosse o catarro, o tornasse velho por direito, Talvez… mas, pensando melhor, tal documento, a existir, só lhe traria problemas. Num acesso de rigor, podiam declarar-lhe falhas de memória, distrações, uma ou outra pequena confusão. Daí a perder o direito de usar a sua própria cabeça, era um passo, sabia-o bem. Para ganhar um direito, perdia outro. Resolve dar a volta, e vira-se para o lado do sentimento, arrastando consigo o cobertor das angústias. Mas no lugar vago, guardado para a solidão, já se tinha aninhado de novo, o raio da bicha, que só de cabeças tinha muitas, (como a de Silvalde) a ensarilhar-lhe a viuvez, com as dores nas articulações e outros desgostos, grandes e pequenos, que de momento não tinha lembrança de quais eram. Que atrevimento! Nem na cama, um homem pode ter sossego! Teria de pedir autorização? Como tudo o que é demasiado grande, a questão deixa de lhe caber na cabeça, escorre para o estômago, como azia, e acaba por lhe sair pelos pulmões, em alto e bom som, a ecoar pela casa,  POSSO SER VELHO?

Do quarto ao lado, a mãe que nunca dorme, e só fala durante o sono, responde num fiozinho de voz, Ainda não!

 

 

 

 

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Artificial

por esquisita, em 21.09.23

 

Miolinho pão de leite, luz dos meus olhos,

Artificial, é a rosa de plástico, flor a fingir, e nem o fingimento ou o plástico a impedem de ser rosa melhor à vaidade dos olhos do criador. Ser pai e senhor do artifício, não retira ao fogo o ardor. Sossega o artífice, até que lavre o incêndio na mata do sentir. Se depois, incapaz de se conter, a chama lhe devorar a suprema rosa do sentimento, vai dizer amor artificial?

Bolachinhas, leite morno, meu tesouro, não vás por mim, que nada sei e só me engano.

Vamos dormir, até amanhã!

 

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Opinador?

por esquisita, em 26.07.22

 

Opinativos opinantes,
fazedores de opinião pública?
Engolidores de público seguidor de opinião?
Quanto mais ecoam, mais cresce a espiral...
Mas que raio, é um opinador?!
... e o silêncio avança!

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Olhar

por esquisita, em 08.07.22

 

Estou a olhar para os dedos dos pés. São dedos de menina. Pequenos e redondinhos, brancos, suavemente rosados ao redor das unhas, como gotas de água pura, em pálidos tons de rosa. Pousados ao fundo da cama, descansam de tanto correr pelo tecto. É um tecto sem idade. Grande e rectangular, branco, ligeiramente cinzento junto aos cantos, como espelho de água parada, em deslavados tons de cinza.
Estou a olhar para os dedos dos pés com os olhos de mulher que correu mundo no tecto do quarto, enquanto menina. Pergunto-lhes, quanto os marcou o isolamento, quanto lhes doeu a caminhada da cura?
Destes dedos dos pés de menina, eu mulher e o branco tecto, sabemos agora o que então sabíamos:
Querem tocar o chão das outras crianças e correr no mundo delas.

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Entendimento

por esquisita, em 12.05.22

 

O tempo em que se forma o entendimento é o princípio da escolha das coisas que se querem entender...
Sem altura para mais, nivelava o olhar pelo mármore branco. Pupilas dilatadas e olhos salientes, cruzam-se no mesmo plano castigado pelo sal e pela lixívia, onde desemboca a madrugada que se despeja dos cabazes e caixas de madeira. Neste mar sem água, boia ainda um suave ondular de vida que se vai apagar no contraste da azáfama.
Do outro lado, mãos a amanhar o vermelho sangue na guelra, que narizes atentos escolhem e desdenham para melhor regatear ou peso ou o preço, escamam e cortam, escalam a carne firme e tornam a apregoar.
Translúcidos reflexos fazem eco, e por todo lado se ouvem vozes no tom metálico que tem o sabor da maresia. É tomar sentido nas coisas e descobrir, e pelos sentidos o que elas são.
Dez réis de gente é o bastante para compreender a fronteira. O sacudir das escamas, o subtil entreabrir das conchas, o deslizar de tentáculos viscosos, ou o estremeço ligeiro de finas patas e fortes pinças, não são mais que despedida, gelo a derreter.
Depois, a contrariar a quietude do fim, as enguias têm que se perceber de outra maneira – ou então nunca.
Mais tarde se poderá revelar o mistério desfeito da geração espontânea, o enigma da metamorfose ou a épica viagem entre águas salobras e salgadas. É para isso que servem manuais e compêndios, mas quando se aprende o escorregadio serpentear um ser estripado, que se contorce para além da vida…
O entendimento é uma escolha?

 

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Heróis

por esquisita, em 22.04.22

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Passo e leio no passeio
paro e penso heróis
não sou nem sei
se fugir é verdadeiro
é o pecado ficar?

 

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Desnorte

por esquisita, em 20.03.22

 

O dia já é meio,

a outra metade caminho

 

Ligados pela metade,

desunidos os passos no andar, 

Juntos o vagar do dia

e a pressa da razão, 

não lhes importa a estrada,

querem saber onde estão

 

O que sabem é metade,

meia certeza do saber

 

Adiante o mar poente,

reverso passado do nascer

A direito lhes sopra a estrela,

do outro lado coração

não lhes importa o que os move,

querem saber onde estão 

 

E o que dizem os sinais?

8730

Querem saber onde estão…

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Basaréu

por esquisita, em 04.03.22

 

Quanto tempo em cima do muro?
Tanto viver equilibrado, inseguro
onde o deixaram ficar,
ficou
quieto, esquecido ou garantido

Vira o vento,
virou, caiu, tombou
Ainda lá podia estar…

Se houvessem
deuses que sorrissem,
ou criada a quem culpar
Por mor de se aquebrantar
o basaréu de bidro,
quem iremos acusar?

Aaa.jpg

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Agora

por esquisita, em 16.01.22

 

Forte Muro, falta-te força, sobra-te a sombra

É a mim que queres ouvir?

Guardaste com fogo a fraca fronteira

da casa caída

Agora,

receias ruir...

Foste frente caiada, cal viva

na parede suja e esquecida

Agora,

atormenta-te o porvir...

Foste barreira, muralha erguida

no erro de temer errar

Não temas agora perguntar

O que pode a paliçada

que não se pode transpor?

Pode o tempo, pode a vida?

Pode abrigar o amor?

Fraco Muro, se me ouves,

não esperes ouvir por mim,

as respostas que procuro, mas não tenho

Sou só perguntas sem fim!

 

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Reciprocidade

por esquisita, em 12.11.21

 

Não sei porque motivo me lembrei desta palavra, mas não a consigo declarar inocente de sentido duvidoso.

Por um lado, esconde-se na neutralidade, e tanto promete recompensa como ameaça castigo, mas há nela qualquer coisa que me faz lembrar o calculismo de um jogo.

Por que se isto é um jogo, já ouvi dizer que todos podemos ganhar se ninguém quiser ganhar.

Pode a soma ser diferente?

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