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Poderia desculpar-me com a paisagem ou com a pureza dos ares. Uma pessoa desterrada do betão e dos escapes, pode muito bem justificar um transtorno temporário evocando excesso de natureza. No entanto só lhe fica mal usar tais argumentos. De bom tom é proclamar convictamente "adoro o campo, as árvores e as flores". Por ser verdade, subscrevo e afirmo, mas nada consigo retirar à triste figura que resultou de ter aceitado o que há muito sabia não gostar. Estou farta e cansada o de saber, e ainda assim fui na cantiga de receber o presente envenenado nas minhas mãos, para depois de lhe ter rasgado a pele com a unha e soltar a polpa suculenta, levar aos lábios aquela geléia doce e macia, que viria a ser fatal (Ai, que não gosto! Cala-te e come!) Gostar gostei, isso sim, de me ter deixado ficar, feita donzela posta em sossego, a contemplar o cavalheiro esforçado saltar o muro, arriscando enfrentar o cão e o dono, para subir à árvore e escolher, de entre todos, o fruto mais maduro. Se para meu regalo se aplicou a colher as primícias do outono, só as posso aceitar e bem agradecer (Não sejas parva, engole isso de uma vez!) Contudo os gostos rebeldes podem-se encobrir com modos polidos, mas a natureza do corpo não se deixa domesticar. Ainda o néctar meloso escorregava pela garganta, e já a náusea traiçoeira o aguardava no estômago. Valeu-me uma moita mais frondosa, onde fui investigar aves raras e disfarçar a humilhação. Que me sirva de emenda!
Chega o outono, já lá vem outubro, tempo de começar.
Se for linda, quase de certeza que é boa. No primeiro dia, tinha muito medo que ela fosse má, como a D.ª Celeste que ralha e bate, por ser feia. Ela põe as meninas dela de castigo, viradas para a parede com os joelhos no chão e manda fazer cópias durante o intervalo, sem lanchar. Quando chama burra e estúpida, fala muito alto, para se ouvir na escola toda e deixar as meninas envergonhadas e a chorar. A D.ª Celeste é má e feia, mas tão feia, que nem as contínuas gostam dela. A minha professora não é assim, fala baixo e com voz rouca por causa da alergia ao pó do giz, e porque é boa. Eu tinha medo, mas vi logo que era boa no primeiro dia. Depois de fazer a chamada, disse que nós todas juntas éramos os seus pintainhos. E não foi só isso, ela mandou guardar a régua de madeira na caixa métrica. Eu ainda não sabia o que era a caixa métrica, que estava ao fundo da sala por baixo dos mapas das terras e do corpo por dentro. Ao lado do quadro estava um esqueleto que assustava e por cima havia o crucifixo e os retratos de uns senhores muito sérios, sempre a olhar para nós, que assustavam ainda mais. Essas coisas ela não mandou guardar, mas pensei que a minha professora era boa, só por não querer a régua para bater. Olhei para ela e vi que era linda, parecia uma mãe com bata branca. Nós também temos bata branca, mas as batas das meninas apertam atrás com botões e com um laço e a bata das professoras tem os botões à frente e ao meio. A bata dos rapazes também aperta à frente, mas de lado e nesta escola não há rapazes. Têm uma escola só para eles. O avô conta que a escola dos rapazes foi feita para todos, quando era no tempo dele. O pai diz que não se pode deixar torto aquilo que nasceu direito e que está mais que na hora de fazer as coisas mudarem. O avô manda-o falar baixo, porque as paredes têm ouvidos e o pai não se cala e mete-se em trabalhos muito maiores do que a escola, que fazem a mãe ficar aflita. Eles falam e às vezes discutem, eu presto muita atenção, mas nunca os ouvi dizer nada sobre a maneira como as batas apertam. A minha é branca, muito branca e sem quadrados como o bibe, Foi a minha avó, quem a fez a bata. Ela sabe costurar e fazer muitas outras coisas, mas não sabe ler. O avô ensinou-a a desenhar o nome para não ter que pôr uma cruz em vez do nome, e eu vou ensinar-lhe a escrever o resto. É por isso que ela quer muito que eu vá à escola. Também tenho outra avó, que vive longe com o outro avô. Mandou-me um casaquinho branco para pôr por cima da bata quando estiver frio. Foi ela que o fez, com um novelo de lã, porque sabe tricotar e também sabe ler e escrever. Aprendeu com os professores que iam a casa e depois fez um exame e foi para o colégio. A ela não posso ensinar, mas vou-lhe escrever muitas cartas a contar o que aprendi. Ainda bem que a minha professora é linda!
Borbulha como poção mágica, fazendo tremer o caldeirão. Defendo-me a custo: na mão esquerda, o testo como escudo, à direita a espada de pau…
Eram danados para engendrar artimanhas. Nos primeiros dias, era juntar o risco de ser apanhado em flagrante com a falta de consistência; nem pensar! Lá pelo meio da semana, já se podia inclinar a malga e deixar que deslizasse inteira. Depois, era só pegar na navalhinha de capar grilos, e cortar-lhe a curva por altura do pólo sul. Logo ali e sem demora, a dividiam entre si, para que se derretesse na boca, enquanto remediavam o desfalque. Voltava tudo ao seu lugar, sem que ninguém desse por nada. Ao outro dia, se tornava a fazer sol, lá estava a tentação debruçada no peitoril da janela providencialmente aberta, a desafiar a gula. Mais uma volta e mais um paralelo era subtraído à socapa. Por essa altura, o hemisfério ficava reduzido a pouco mais que um disco delgado apoiado por uma rudimentar, mas eficaz, estacaria de gravetos. Aconchegada no seu lençol de seda perfumado a aguardente, muito composta, como se intocada por mãos tão gulosas como matreiras, a marmelada continuava a secar ao sol.
…Valha-me Deus, que horas são estas?!
Em que cismas?
No bago rubi da romã rachada,
e na gota carmim, que escorre do recente rasgo incadescente…
Que dizes tu, criatura?
…rubro fruto, onde descubro um outro Outono, que fora de mim ocorre!
Estafermo d'um raio, que muito te embeiças por palavras!
Soubesse a semente,
ao que que está destinada…
Temos festa!
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