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Era Feliz o Mortal de ontem à noite.
Ainda antes de apagar a luz me pareceram
felizes todos os passageiros da carruagem
e até mesmo a Mortal esposa…
Os pneumáticos tornam a bufar sem efeito visível e o motorista, intransigente no cumprimento dos seus deveres profissionais, rosna entre dentes que dali não sai enquanto as portas não fecharem.
Decidida a entrar neste autocarro, já com um pé no patamar, Aldina tenta contrariar a má sorte de pela segunda vez ficar em terra, abrindo caminho com o ombro. A sua figura franzina está aumentada por um apêndice volumoso. Logo hoje, dia de greve em que tem que apanhar três autocarros para voltar a casa, se lembrou a doutora das quartas-feiras de lhe deixar junto com o pagamento, um saquinho bem anafado. São coisas em desuso, oferecidas por gosto e abundância, e acolhidas com agrado. Agradece de coração o bom coração de quem dá, mas é um facto que nestas circunstâncias o saco se torna um estorvo.
Aldina pede auxílio aos que já se resignaram a esperar pela próxima viagem, para que empurrem e comprimam o aglomerado de gente que entope a entrada, de forma a que também ela e o seu saco caibam nesta carrada. Quem fica ajuda – não sem interesse de ver a fila emagrecer – e as portas gemem e chiam, tornam a tremer, giram no eixo e acabam por rodar sobre si mesmas para se fechar.
Ainda falta um degrau, mas Aldina já está dentro, vai seguir viagem, e é isso o que lhe importa
O autocarro retorna lento ao fluxo do trânsito, num pára-arranca intermitente, com o motorista a reclamar a prioridade que tem, até que alcance a faixa que lhe é destinada, para então ganhar velocidade. Amontoados ao acaso, os passageiros formam temporariamente uma espécie de mixórdia de corpos, em que ninguém sabe ao certo onde cada um começa ou acaba. Sem ter oportunidade de validar a passagem, Aldina segue adiante no corredor, arrastada pela avalanche humana que procura acomodar-se da melhor forma.
A cada paragem refaz-se a lotação, um ou outro lugar sentado troca de dono – outros ouvidos tamponados por auriculares, outros olhos a rolar nos ecrãs, outros rostos revelando os mais diversos estados de ânimo – mas sem que se altere favoravelmente o saldo entre os que saem e os que entram.
Por fim, Aldina sente os pés tocarem o chão, encontrou o seu canto não muito longe da porta da saída. Encaixou-se entre os lugares sentados frente a frente no último troço da viatura. Vai de pé e não tem onde se agarrar, nem mãos livres para o fazer. Mulher precavida, tem sempre uma mão de guarda à mala que traça entre o ombro e a anca, a outra está hoje destinada ao precioso saco. Tenta manter o equilíbrio e só a barreira de gente que lhe invade o espaço íntimo, lhe dá suporte para se manter na vertical.
Repetidos atrasos na entrada de passageiros fazem com que o condutor inicie uma competição com os semáforos para recuperar o tempo perdido. Como na maioria dos jogos, nem sempre se ganha, nem sempre se perde, o que neste caso, corresponde a consecutivas acelerações e travagens. Assim, pouco antes do término da viagem, um cruzamento traçado a régua e esquadro e um sinal amarelo, levam o autocarro a uma manobra brusca e inesperada que faz Aldina perder o equilíbrio. De súbito vê-se estendida de costas, descomposta e desorientada, sobre joelhos estranhos. O aperto que até este momento suportou com firmeza, rebenta numa só lágrima, filha única de humilhação, sem dar espaço a outras emoções, porque o autocarro chegou ao destino. Tenta recompor-se, pede desculpa, ergue o corpo. Na mão tem um par de óculos que agarrou no desespero da queda e que devolve ao legítimo proprietário. É então que dá pela falta do saco. Dá-se o direito de aguardar que passe a confusão da saída para o procurar. Talvez alguém o tenha levado, talvez seja agora só folhas soltas e livros pisados, pelo chão.
… se não por via das atribuladas núpcias,
só pelo caso raro de viajar noutro comboio,
pode dizer-se feliz.
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