Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os males do mundo

por esquisita, em 24.06.25

 

O Ligório da drogaria tem a porta fechada, vai para um mês. Diz o papel, ENCERRADO POR MOTIVO DE DOENÇA…

 

Não lhe vou dizer, como se ouve cada vez que acontece uma desgraça, que com esta idade não tenho lembrança de uma coisa assim. Também não estamos a falar das cheias ou dos incêndios, pois não? Ou será que estamos? Nem lhe vou repetir que não há palavras para descrever. Palavras há-as sempre, podem é ficar acanhadas na garganta por não se acharem obscenas o suficiente para tamanha enormidade. Se fosse para lhe dizer que a humanidade está à beira do fim, já que o homem é o mais reles dos animais à face da Terra, teria que ser outro bicho que não humano, e assistir do lado de fora à miséria humana. De maneira que não tenho outro remédio senão aceitar ser gente, fazer parte, ter voz e memória. Lembro, sim!  E se uma vida inteira não chega, para alguma  coisa deve servir essa coisa a que chamam a memória coletiva.

Não sei se me está a perceber, porque eu ainda não lhe disse coisa nenhuma.

 

… e acrescenta, CONTACTAR XXX XXX XXX. (Não divulgo o número, porque senão o homem não tinha sossego com tanto telefonema a desejar-lhe as melhoras)

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

21

por esquisita, em 13.03.25

 

Agora que tenho vinte e um anos de idade, nasceu-me um menino. Depois de casar vim morar com os meus sogros e vivemos todos juntos em boa paz.

Por uns tempos andei desanimada. Ao invés de outras que rápido alcançam, eu demorei. A minha sogra sempre me acarinhou, para que tivesse fé que cada coisa vem na altura certa. Com ela também assim foi, e eu não devo estranhar, porque agora pertenço a uma família de filhos únicos que às vezes tardam. É uma boa mulher. A ela chamo mãe, como é costume, e faço gosto nisso.

Depois, enquanto andei de esperanças, não me chegaram os enjoos nem os desejos, só uma moleza pouca nos primeiros tempos que logo passou, o que ganhei foi medo. Não medo de dores ou sofrimento, mas o medo de perder a criança. Tornei-me cismática, como nunca tinha sido. Para me sossegar, dizia a minha sogra que pôr um filho ao mundo não tem mistério nenhum e que havíamos de falar a uma parteira para vir a casa ajudar-me a dar a luz e cuidar de tudo o resto. Mas eu comecei a empreender no por aí se fala: das crianças atravessadas, das que vêm de pés, das que trazem o cordão enrolado no pescoço. Vinha-me à lembrança o sucedido a uma rapariga da minha criação, que Deus a tenha! A comadre não lhe conseguiu valer, o médico já chegou tarde, perderam-se os dois, ela e o anjinho, que Deus os tenha. De maneira que ganhei amizade à minha sogra, e não foi por não lhe ter respeito que na minha cabeça foram se pondo outras ideias para quando viesse a minha hora. Como não quero criar desavenças, ao princípio não disse nada a ninguém. Só mais para o fim falei ao meu homem. Ele é muito meu amigo, sabe ouvir das minhas razões. Contei-lhe que fazia tenção que as coisas fossem de outro jeito, ao que ele respondeu que se fazia como eu entendesse melhor.  Eu achei por bem que nascesse no hospital e foi assim que aconteceu. Poucas são as que fazem como eu, mas não me arrependo. Tive um menino são e escorreito que há-de ser um homem grande e forte, se Deus quiser. Quem sabe seja este o único.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

15

por esquisita, em 05.02.25

 

Para trás ficaram os 9

Agora que tenho quinze anos de idade, vim trabalhar para a cidade, servir em casa do irmão da senhora. Ela não era má pessoa. Não sei se por gostar de mim ou por ter pena de nós, mas não ralhava muito e dava-me sempre alguma coisa para levar aos meus irmãos, quando ia a casa, ao domingo à tarde, depois de arrumar a cozinha. Eu estava acostumada àquele serviço, não pensava em sair dali e ir para longe, onde as tardes de domingo não chegam para ir ver os meus pais. Mas o irmão dela precisava de uma rapariga séria e trabalhadora, acertaram as coisas e a senhora disse-lhe que podia ficar comigo. 

Ele é doutor de leis, muito conhecido. Aqui, faço os trabalhos de dentro mais leves e sou eu que limpo o escritório. Despacho tudo de carreira e torno a pôr as coisas ao sítio, sem tirar os papeis da ordem nem desmarcar os livros. Não me enleio a ler o que está escrito, porque é melhor que pensem que desaprendi o pouco que sei ler. Também sou eu que vou atender as visitas à porta. Recebem gente importante, por isso deram-me uma farda para estar bem apresentada, e fiquei com um casaco de fazenda que a senhora já não usa, para quando a acompanho até à igreja. O senhor doutor diz que eu devo ir e voltar com ela, mas não preciso de entrar, posso esperar no adro, porque ninguém deve ser obrigado a assistir à missa. Ele diz isto e outras coisas que não percebo. São outros costumes, outras ideias. Como é um homem muito estudado, deve saber o que diz, mas a minha mãe, quando soube desses ditos, logo me avisou que se eu não entrar para receber a sagrada eucaristia, tenho a minha alma perdida.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

Passam os anos

por esquisita, em 29.06.24

 

Passaram dez anos, há dez anos que não falamos.

A espaços, cada vez mais longos, sem aviso prévio nem causa aparente, – ainda que, por esta vez, possa aceitar como mote o fascínio dos números redondos – torna a ideia de estar ao meu alcance pôr fim ao silêncio. Esta memória rebelde há muito devia ter sido banida da lista de coisas pensáveis, no entanto refugia-se à socapa, nalguma prega  remota do cérebro e, quando menos se espera, reaparece disfarçada da mais absoluta evidência.
A certeza de que o facto de não falarmos depende apenas da vontade, ou da oportunidade para o fazer, é de tal forma intensa que, numa urgência patética de reencontro, procuro nos bolsos, a chave do carro, sabendo de antemão que a tenho guardada na mala. Antes que a encontre, consulto o relógio para avaliar se o avançado da hora permite encontros imprevistos e ao constatar ser pleno dia, acabo por considerar a possibilidade de aguardar pela saída do trabalho. Para abreviar a espera, pego no telefone e pesquiso o contacto que há quase uma década foi eliminado com o objetivo de evitar a cada chamada ouvir que não está disponível, ou, pior ainda, descobrir que o número acabou por ser atribuído a uma voz que me é estranha. Somam-se os sinais de absurdo pensar. Enquanto for possível, vou ignorá-los para prolongar a ilusão de segurança que resulta das coisas garantidas: Falamos quando nos apetecer, se não for agora, é depois.
Em fundo já se faz ouvir o bulício da razão arrastando as peças para restabelecer a ordem. Até ao limite fujo, por pensamentos paralelos, ao inevitável reconstruir da realidade.

É irresistível tocar as coisas pensadas.

O prazer de encontrar números e riscos depois de ganharem forma, não se pode limitar à visão. Escusado será avisar que “tem dentes”, quando as ideias se tornam matéria palpável.
No dedo médio, ficou a picada intermitente de uma ínfima partícula de metal. Se permanecer sob a pele, ou o corpo a tolera, e com o tempo forma um pequeno calo, ou rejeita-a após uma inflamação mais ou menos grave. Uma terceira via, mais imediata, é fazê-la sair pelo mesmo caminho por onde entrou, nem que para isso seja necessário rasgar a pele.

Por medo da dor se magoa com dor maior.

Do tempo destinado às lágrimas e ao consolo de doces recordações, retenho o esforço para impedir que no futuro a memória me surpreendesse. Cada passo do último  caminho foi revisitado exaustivamente nos seus mais tenebrosos pormenores. O que não se esquece, não nos poderá assaltar à traição.

Soberba, digna de misericórdia.

Dos meus dedos delicados de mulher, esperam a habilidade de retirar limalhas cravadas nos olhos. Esperam em vão, porque:
1º É obrigatório o uso de óculos de
proteção. Não arranjem confusões com os seguros!
2⁰ Pouco me importa que o enfermeiro do posto médico seja um carniceiro; Cada um no seu mister!
3⁰ O Sr. V… tem um jeito tremendo para retirar limalhas dos olhos, com uma cerda de vassoura e resolve o caso melhor que eu.
Usem os óculos, inventem o que quiserem na participação aos seguros, entendam-se com o enfermeiro e aguentem-se à bronca. Depois, agradeçam ao Sr. V…, a perícia dos seus dedos delicados… de homem.

Não falamos, porquê?

Em iguais circunstâncias, muito embora se diga que nunca são exatamente as mesmas, mantém-se assíduas conversas, juntando outra voz ao diálogo interno. Poderíamos, nós também trocar, nem que fosse, uma só palavra?
Reconheço a fórmula. Pena que tenha caído por terra o “só”, porque mais só, não posso falar, e já me vão faltando as forças para continuar a não ser digna. Subsiste o mistério da palavra: Qual?

Passaram dez anos…

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

Parece redonda

por esquisita, em 23.02.24

 

Acordava tarde com o aroma de manteiga derretida. Eram os ovos mexidos do pequeno almoço a que não estava habituada, servidos num prato de porcelana antiga, que a avó pousava em cima da mesinha redonda para onde convergia o terno de sofás. O avô trazia uma das banquetas estofadas para que me sentasse e depois ia acomodar-se junto à janela, para me fazer companhia ao mesmo tempo que passava os olhos pelo jornal. Um perfeito absurdo, considerava o pai quando lhe contava aquela extravagância. Deixar uma criança tomar o pequeno almoço na sala de visitas, podia torná-la cheia de tiques e manias, dizia ele. Mas a avó estava decidida a fazer o que estivesse ao seu alcance, para eu me sentir em casa dela como uma espécie de princesa. Evitava dizê-lo para não criar conflitos, e quando era confrontada, argumentava com o facto de a pequena dimensão da mesa ser a mais adequada ao meu tamanho. Tudo aquilo me parecia muito divertido. Não tinha mais aspirações a ser princesa, do que outras fantasias no reino faz-de-conta onde podia ser o que quisesse. Gostava de tomar o pequeno almoço naquele compartimento poupado ao uso quotidiano, não tanto por me ser dado o privilégio reservado às visitas, mas sim porque me fascinavam as formas curvilíneas da mobília. Os pés dos sofás eram um arco curto e gordo como coxas de frango, mas a mesa assentava em  pernas ondulantes que imaginava pertencerem a graciosas bailarinas. Para mim, aquilo era o cúmulo da elegância. Foi por isso que fiquei com a mesa de centro da avó, onde agora pouso a querida laranjeira que me traz tantas dúvidas. Sei que se vinga com minúsculos frutos, tão perfeitos quanto azedos. 

Não sei se é mais correto aprisionar laranjeiras em vasos do que pássaros em gaiolas.

20240212_113949.jpg

Quando encontrei esta mesa, quase redonda, foi nas pernas que primeiro reparei. Que pernas tão delicadas para suportarem um tampo tão pesado!
A obra é de Vasco Araújo. Penso que o texto da Mariazinha a limpar talheres de prata é de Pepetela. Por ter cérebro de ovos mexidos, não tenho certeza. Se estiver enganada, peço desculpa.

 



Autoria e outros dados (tags, etc)

Notas 162

por esquisita, em 15.02.24

 

É indelicado importunar as pessoas com certos assuntos. 

Não me apetece escrever, irei até onde for capaz.

 

Primeiro foi a do Moisés. Tinha ele não mais de sete ou oito anos, quando a mãe saiu de casa para ir pagar uma promessa. Eu, naquela idade, conservava ainda a inocência necessária e suficiente para acreditar que as pessoas com propósitos piedosos, como era o caso de quem ia até Fátima a pé, ficavam a salvo de acidentes, guardadas por especial proteção superior. Estava errada.

Nunca tinha sido amiga do Moisés, antes conhecido e apontado como provocador de brigas e desacatos. Tinha medo dele. Ainda assim, quis que me levassem pela mão até a porta da capela para dar um abraço ao rapaz que estava lá dentro a despedir-se da mãe. Julguei sentir em mim o mesmo desamparo.

Não me tornei amiga do Moisés, depois merecedor de condescendência geral para qualquer falha, a coberto da perda. O meu medo transformou-se.

Diferente e sem nome, esse sentimento novo começou a maquinar na cabeça uma estratégia ainda mais ingénua: Se conseguisse partilhar da dor dos outros, poderia ser poupada ao meu próprio sofrimento. Continuei errada.

As circunstâncias acabaram por abrandar os modos brutos do Moisés. Com o tempo, depois da revolta inicial, deixou-se de rixas e lutas, para se tornar num adulto prematuro. Eu só tinha crescido um pouco e continuei criança aos olhos daquele miúdo a quem todos passaram a  considerar como um homenzinho.

Do medo nunca nasceu amizade.

 

Só mais umas linhas

 

A seguir foi a da Ana Maria. Eu mal conhecia a mãe dela, porque raramente saía à rua. Diziam que sofria da cabeça, diziam que tinha de dormir com a porta trancada, diziam que se devia ter guardado a chave. Diziam, diziam, diziam, e eu não entendia nada do que diziam entre gritos e choro, quando de manhã encontraram o corpo no canal, enterrado no lodo da maré vaza. Continuei por muito tempo sem perceber, não sei mesmo se alguma vez o irei conseguir.

Por mais que perguntasse, ninguém estava disposto a contar-me as coisas como elas são. Ia escutando meias palavras destinadas a poupar as crianças, tirava as conclusões possíveis: Sofrer da cabeça, não era ter enxaquecas como a D. Elvira, que se fechava às escuras, em silêncio durante três dias seguidos e depois ficava bem e cheia de fome por quase não ter comido durante tanto tempo. Não era a mesma coisa, exceto no escuro e no silêncio.

 

Estou a sentir-me enjoada, mas vá lá…

 

Depois, foi a da Rosarinho. Ao que a matou, ninguém gostava de chamar pelo nome. Tinha uma coisinha má, não na mama, mas no peito. A mãe da Rosarinho, bem se podia ter salvo, pensava eu.  

O marido era médico, conhecia muitos outros médicos no país e no estrangeiro, mas ela tinha pouco tempo e não quis…

 

P’ro c@ralhø, quem inventou que escrita ajuda!

Nem mais uma palavra!

ACABOU!





Autoria e outros dados (tags, etc)

Coisas

por esquisita, em 15.12.23

 

Coisa triste, primeiro Natal de orfandade
Coisa feia, ir cortar pinheiro à mata
para o fazer coroar com estrela de cartão

Por sorte, a fortuna antiga entope a pia
Fica a cozinha alagada, como manda a tradição

Vem o pastor, mago da chave inglesa
e as suas ovelhas com pezinhos de lã
Vem a lavadeira, de mangas arregaçadas
traz rodo e panos do chão
Secam as águas

Toca a banda uma marcha desafinada
ainda mais azul
Coisa estranha, que não se suspenda o Natal por falta
Coisa boa, o que ficou

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

Redação

por esquisita, em 22.09.23

 

Chega o outono, já lá vem outubro, tempo de começar.

Se for linda, quase de certeza que é boa. No primeiro dia, tinha muito medo que ela fosse má, como a D.ª Celeste que ralha e bate, por ser feia. Ela põe as meninas dela de castigo, viradas para a parede com os joelhos no chão e manda fazer cópias durante o intervalo, sem lanchar. Quando chama burra e estúpida, fala muito alto, para se ouvir na escola toda e deixar as meninas envergonhadas e a chorar. A D.ª Celeste é má e feia, mas tão feia, que nem as contínuas gostam dela. A minha professora não é assim, fala baixo e com voz rouca por causa da alergia ao pó do giz, e porque é boa. Eu tinha medo, mas vi logo que era boa no primeiro dia. Depois de fazer a chamada, disse que nós todas juntas éramos os seus pintainhos. E não foi só isso, ela mandou guardar a régua de madeira na caixa métrica. Eu ainda não sabia o que era a caixa métrica, que estava ao fundo da sala por baixo dos mapas das terras e do corpo por dentro. Ao lado do quadro estava um esqueleto que assustava e por cima havia o crucifixo e os retratos de uns senhores muito sérios, sempre a olhar para nós, que assustavam ainda mais. Essas coisas ela não mandou guardar, mas pensei que a minha professora era boa, só por não querer a régua para bater. Olhei para ela e vi que era linda, parecia uma mãe com bata branca. Nós também temos bata branca, mas as batas das meninas apertam atrás com botões e com um laço e a bata das professoras tem os botões à frente e ao meio. A bata dos rapazes também aperta à frente, mas de lado e nesta escola não há rapazes. Têm uma escola só para eles. O avô conta que a escola dos rapazes foi feita para todos, quando era no tempo dele. O pai diz que não se pode deixar torto aquilo que nasceu direito e que está mais que na hora de fazer as coisas mudarem. O avô manda-o falar baixo, porque as paredes têm ouvidos e o pai não se cala e mete-se em trabalhos muito maiores do que a escola, que fazem a mãe ficar aflita. Eles falam e às vezes discutem, eu presto muita atenção, mas nunca os ouvi dizer nada sobre a maneira como as batas apertam. A minha é branca, muito branca e sem quadrados como o bibe, Foi a minha avó, quem a fez a bata. Ela sabe costurar e fazer muitas outras coisas, mas não sabe ler. O avô ensinou-a a desenhar o nome para não ter que pôr uma cruz em vez do nome, e eu vou ensinar-lhe a escrever o resto. É por isso que ela quer muito que eu vá à escola. Também tenho outra avó, que vive longe com o outro avô. Mandou-me um casaquinho branco para pôr por cima da bata quando estiver frio. Foi ela que o fez, com um novelo de lã, porque sabe tricotar e também sabe ler e escrever. Aprendeu com os professores que iam a casa e depois fez um exame e foi para o colégio. A ela não posso ensinar, mas vou-lhe escrever muitas cartas a contar o que aprendi. Ainda bem que a minha professora é linda!

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

Ó mãe!

por esquisita, em 03.08.23

 

Ó mãe, posso ir contigo à praça da hortaliça! Ó mãe, deixa-me ser eu a levar a ceira!...agora a minha irmã também quer! Ó mãe, ela está-me a chatear! Ó mãe, eu sei atravessar sozinha, não preciso da mão! Ó mãe, posso pôr uma moeda no ceguinho? Ó mãe, se ele não vê, como é que sabe tocar? Ó mãe, estão a matar as galinhas! A água quente é para as afogar? Ó mãe, as penas cheiram mal! Que nojo! Ó mãe, deixa-me fazer brincos de cereja! Posso provar o triângulo da melancia! Ó mãe, porque é que as bananas estão penduradas? Ó mãe, posso ficar com o caracol das couves? Ó mãe, pede à senhora Matilde para ser eu a dar à manivela do caldo verde! Ó mãe, eu não quero entrar no talho! Tenho medo! Ó mãe, podemos levar regueifa? Ó mãe, porque é que as moedas do Santo António estão verdes! Para que é que são estas velas? Ó mãe, a minha irmã está a enfiar as mãos no alguidar das azeitonas!... eu também, mas foi só um bocadinho! Ó mãe, leva tremoços e pevides! Ó mãe, pode ser antes camarinhas? Ó mãe, quero fazer xixi! Ó mãe, aquela senhora vive sempre na casa de banho? Ó mãe, posso ajudar a levar os cravos? Ó mãe, doem-me as pernas, vamos para casa! Ó mãe, podemos ir ao café, comer um bolo? Ó mãe, o que é Tangará? Ó mãe, o Celestino deu-me um rebuçado e eu disse, obrigada! Ó mãe, queres que vá chamar o miúdo do jornal? Ó mãe, porque é que ele tem um bolo e um sumo, só para ele, e eu tenho que dividir com a minha irmã? Ó mãe, ele pode vir para nossa casa? Ó mãe, Ó mãe, Ó mãe, Ó mãe dá-me auga!

Dizia que eu ainda havia de lhe gastar o nome, e se não gastei, pelo menos esforcei-me bastante.

Autoria e outros dados (tags, etc)

Direito

por esquisita, em 25.04.23

 

Por ser sempre tão atento aos meus desejos e condescendente para com as minhas vontades – talvez até um pouco permissivo nos caprichos – era difícil compreender aquela recusa definitiva e incontestável.
Não se abre!!!
Eu argumentava com razões que me pareciam evidentes. Fazia parte do pedido de notícias, das saudades e dos beijinhos, nas costas do postal. A possível nota de vinte escudos para ajudar à compra dos patins, estaria à minha espera entre as duas folhas da carta perfumada. Se fosse uma daquelas encomendas que o Sr. Fernando trazia no fundo do saco de couro, podia contar com os caramelos embrulhados no papel Kraft, ou quem sabe, com a camisola tricotada. A avó nunca se esquecia de mim.
Protestava a injustiça, pedia justificações.
Não tem o nosso nome no destinatário, não abrimos!
Toda a intimidade é inviolável. A correspondência entre mãe e filha, ainda que inclua a neta, também.
Para não me ver triste, dava-me abraços e beijos, ou cinco escudos para pôr no mialheiro, ou uma sombrinha de chocolate e prometia que íamos os dois aprender a tricotar. Ficávamos à espera que a mãe voltasse na sexta-feira, para revelar o que era dela.
Ensinava-me o respeito, mas sem querer que eu soubesse que repudiava um direito. Talvez, por o considerar de tal forma aberrante, nunca quis que o conhecesse.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.



Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D