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Não conheço nada que se aproxime mais da sensação de voar, que saltar de um baloiço a alta velocidade.
Sorrateira, saio pé ante pé. Há que aproveitar as ocasiões, que os baloiços são só dois e a procura é muita.
Ora vamos lá levantar voo. Motor a trabalhar, que é como quem diz, coração a bater forte e um, dois, três… pelo imenso céu fora, feliz e livre, sem asas nem avião.
Haverá coisa melhor?
Não sei nem conheço.
As aterragens é que são mais complicadas, mas nada que não se resolva. Basta levantar a cabeça e… uma impressão na nuca, umas estrelinhas a piscar, apaga-se a luz.
Torna-se a fazer dia, lá para o lado do hospital, ao som de um muito intrigado:
"Minha senhora, tem a certeza que foi um baloiço? São 7h da manhã e a menina está descalça e em pijama!"
Esta memória foi redigida pela Provecta Rainha da Escrita Esquisita, em resposta ao desafio do Valente Cavaleiro Dom Marco del Merlo
Maio, mês de se arrastarem os móveis para encerar o soalho
Maio, mês de se acenderem os lustres para iluminar a festa
Maio sem medo, mas com respeito e Santa Bárbara nos acuda,
que este é o mês dos
Grandes Bailes Celestes!
Perguntaram-me se sabia o que eram umas Lois, e eu ia dizer que eram...
...mas depois, memória puxa memória, e esqueci-me de responder...
O tempo em que se forma o entendimento é o princípio da escolha das coisas que se querem entender...
Sem altura para mais, nivelava o olhar pelo mármore branco. Pupilas dilatadas e olhos salientes, cruzam-se no mesmo plano castigado pelo sal e pela lixívia, onde desemboca a madrugada que se despeja dos cabazes e caixas de madeira. Neste mar sem água, boia ainda um suave ondular de vida que se vai apagar no contraste da azáfama.
Do outro lado, mãos a amanhar o vermelho sangue na guelra, que narizes atentos escolhem e desdenham para melhor regatear ou peso ou o preço, escamam e cortam, escalam a carne firme e tornam a apregoar.
Translúcidos reflexos fazem eco, e por todo lado se ouvem vozes no tom metálico que tem o sabor da maresia. É tomar sentido nas coisas e descobrir, e pelos sentidos o que elas são.
Dez réis de gente é o bastante para compreender a fronteira. O sacudir das escamas, o subtil entreabrir das conchas, o deslizar de tentáculos viscosos, ou o estremeço ligeiro de finas patas e fortes pinças, não são mais que despedida, gelo a derreter.
Depois, a contrariar a quietude do fim, as enguias têm que se perceber de outra maneira – ou então nunca.
Mais tarde se poderá revelar o mistério desfeito da geração espontânea, o enigma da metamorfose ou a épica viagem entre águas salobras e salgadas. É para isso que servem manuais e compêndios, mas quando se aprende o escorregadio serpentear um ser estripado, que se contorce para além da vida…
O entendimento é uma escolha?
Amanhã, hoje não
que é noite e a luz guia
Amanhã que é Agosto
não me levanto,
não saio da cama,
antes que a meia hora
levante e seja dia
Mas quem me vai avisar?
Se a ronca se calou,
a falta que me fazia!
Vou ter de me levantar amanhã
que era Agosto, hoje não
que é noite e luz guia
Atrasada,
corro ao quarto,
que já se está a vestir!
Pronta e vaidosa,
não bato nem peço,
entro para me mostrar
bonita,
ao mais bonito que já vi
Rodo as flores do vestido
e as da jarra também,
da cortina faço véu...
O que me havia de lembrar!
Casamos hoje? Casamos hoje?
Sorriso branco camisa,
elegante fato novo, diz
hoje não,
mais tarde quando crescer
Subo e cresço em cima da cama,
salto e pulo no colchão
Já sou grande, sou crescida,
está tomada a decisão
Casamos hoje, que é domingo!
Pendurada no pescoço,
nó de gravata diz
hoje não,
Faço cara de desgosto
Desculpas de quem não me quer!
Finjo o coração quebrado
pelo noivo que não quer ser
Quero eu!
Quero, e quero, porque quero!
Menina, tenha juízo!
Mas não se chega a zangar
Dança comigo em volteios,
voamos juntos pelo ar
Abraço apertado, beijinhos...
Não quero pousar os pés no chão!
Contas-me coisas simples, que só sei complicar...
Caiu ao poço, de pouca água gelada, um menino inquieto a experimentar. No fundo do medo encontrou a lembrança do recado e da avó. Não grita pelo frio nem pelo susto mas chora baixinho no escuro, porque ter caído no perigo descuidado.
Fora do poço, falta o menino que a avó tinha avisado e que busca sem sossego e sem saber onde encontrar.
Onde estará o menino? Chama por ele aflita e sem resposta, que o menino bem a ouve mas não a quer ver zangada. Sem descanso, não desiste de o achar. Onde estará o menino? Descobre-o no fundo do poço, onde não devia estar!
Não se zanga a avó, que é maior a aflição. Anda longe, tão longe que só pode tardar, quem lhe possa valer nesta hora.
Então, salta ao poço a avó que nunca lhe vai falhar porque sozinho não se aguenta o menino, e a vida é para guardar.
Juntos no frio do poço, abraçados na escuridão, a avó canta para espantar o medo embalando o menino em oração. Unidos cantam os dois, como quem chama pela luz, tentando enganar o medo com a esperança que demora.
Chegam, pela hora do almoço e não há o que almoçar. Faltam o menino e a avó. Onde podem eles estar? Mas antes que se levante o alvoroço, ouvem o poço a cantar e tudo acaba bem porque logo correm para os ajudar.
...passou o poço e o tempo e a avó volta a saltar. Foi só salvar um menino e não deve demorar.
Podia falar por horas e reforçava o que dizia, com gestos largos e voz grave.
O assunto era recorrente e quem já estava habituado resistia aos tiroteios intensos dos ataques surpresa, abrigando-se por detrás do estirador.
Eu, que tinha chegado há pouco, via a firmeza do traço sacudida pelas explosões repentinas. As descrições sangrentas salpicavam a película com manchas de tinta e os quilómetros em marcha sob sol escaldante, interferiam com o rigor milimétrico dos cálculos.
Era impossível ficar indiferente: inquietava, doía, arrastava para um passado que não era meu. Repetia, em silêncio:
"Não quero! Não quero!"
A minha recusa era imatura, incapaz de compreender o funcionamento de uma máquina obsoleta, alimentada pelo horror da memória. Mas estava a começar em campo aberto, e não podia falhar na leitura do projeto sem perguntar porquê.
A resposta foi breve
"Porque volto lá todas as noites!"
Não importa quanto tempo já passou. Recordo, claramente, esse dia. As flores na jarra, antes de sair, a promessa de voltar contigo, a surpresa de ver afastarem-se os cuidados constantes, o conforto da recompensa com iguais cuidados. Não importa quanto futuro possa ainda vir, enquanto me mantiver inteira, vou guardar esse dia.
O meu corpo pequeno junto ao seu peito, o xaile que nos unia, os passos pelo corredor, a porta a abrir, o pássaro na gaiola.
Não sabes de que pássaro falo?
Ouviste contar tudo o que fizeram para que eu não partisse, e sabes que podíamos nunca nos ter cruzado, mas nunca te falaram do pássaro?
Soltei-o, assim que voltei à vida. Pequena demais para reconhecer a alegoria, ainda hoje me espanta o paralelismo. Queria o pássaro para mim por isso deixei-o voar, depois chorei.
Faço as contas da minha culpa, estremeço ao perceber que só resto eu para guardar a memória desse dia. De tudo me recordo mas não és tu o centro. Uma ave, sem nome, tomou conta do que devia ser teu. Éramos poucos mas éramos tudo. Tão cedo, só ficámos nós.
Queria tanto dar-te justificação para a minha falha. Desculpa, minha irmã.
Numa das paredes da cozinha da minha avó, entre sardinhas de louça e limões vidrados, estava pendurado um prato grande e fundo onde mora, em pinceladas ingénuas, de cores que não sei descrever, um homem de olhos pequeninos e sorriso tímido.
Ó avó, aquele é mesmo o João Pestana?
Pois claro que é!
Como é que sabes? Ele não fala!
Contou-me a minha avó, que foi quem o trouxe cá para casa! E olha que é verdade! Aquela bacia era para o escoado da ceia. Quando estava pronta, chegávamos os mochos ao lar para comer e…
Não comiam à mesa!?
Até podíamos comer no chão, que tínhamos sempre a cozinha bem asseada e bem juncada!
Ah!...E depois?
Depois íamos comendo até ver o fundo à bacia, quando o…
E comiam todos do mesmo prato!?
Claro, rapariga! Que mal há nisso? Mau era se não houvesse o que comer!
Ah!...e então?
Então, o João Pestana aparecia, todo envergonhado por o termos descoberto. Ficava a olhar para nós com aqueles olhos pequeninos e dava-nos logo o sono. Era a hora de ir à deita!
Entro pé ante pé na cozinha que se fez escura e não sinto o tapete de junco fresco nem o cheiro a erva doce que só conheci na rua em dia de Ressurreição. O lume apagado junto ao lar de mármore muito gasto pelo uso, os mochos alinhados junto à parede e em cima pendurado entre as sardinhas assadas e os limões, vive o homem de olhos pequeninos e sorriso tímido.
Tudo escuro, tudo silêncio, tudo calma.
Aí, João Pestana, João Pestana, que os adormeceste a todos!
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