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Por ser sempre tão atento aos meus desejos e condescendente para com as minhas vontades – talvez até um pouco permissivo nos caprichos – era difícil compreender aquela recusa definitiva e incontestável.
Não se abre!!!
Eu argumentava com razões que me pareciam evidentes. Fazia parte do pedido de notícias, das saudades e dos beijinhos, nas costas do postal. A possível nota de vinte escudos para ajudar à compra dos patins, estaria à minha espera entre as duas folhas da carta perfumada. Se fosse uma daquelas encomendas que o Sr. Fernando trazia no fundo do saco de couro, podia contar com os caramelos embrulhados no papel Kraft, ou quem sabe, com a camisola tricotada. A avó nunca se esquecia de mim.
Protestava a injustiça, pedia justificações.
Não tem o nosso nome no destinatário, não abrimos!
Toda a intimidade é inviolável. A correspondência entre mãe e filha, ainda que inclua a neta, também.
Para não me ver triste, dava-me abraços e beijos, ou cinco escudos para pôr no mialheiro, ou uma sombrinha de chocolate e prometia que íamos os dois aprender a tricotar. Ficávamos à espera que a mãe voltasse na sexta-feira, para revelar o que era dela.
Ensinava-me o respeito, mas sem querer que eu soubesse que repudiava um direito. Talvez, por o considerar de tal forma aberrante, nunca quis que o conhecesse.
Não tenho foto e dá-me muito mau jeito dizer raiVas, desculpem. É assim:
Ingredientes
Preparação
Fazem-se ao serão, depois da cozinha arrumada. São rijas e doces. Se quiserem tentar, espero que gostem, como eu gosto.
Nicolau, recolhido no claustro, esconde-se no canto. Descobri-lo na sombra faz barulho, prejudica a saúde dos doentes que devem descansar em silêncio, para não serem mais doentes. As crianças saudáveis que correm e gritam de excitação à vista de um pinguim, não devem abandonar o recreio e procurar o Nicolau. Visitá-lo em saúde é transgredir, tanto como sujar a bata branca no adro da escola dos rapazes, em brincadeiras despropositadas que justifiquem a visita.
Como rasgaste os joelhos?
A saltar da estátua do bombeiro!
Embora lhe censurem a forma de tentação infantil, desrespeitar a gravidade do bombeiro desagrada aos crescidos.
Menina feia!
Álcoois e tinturas, compressas e ligaduras tratam feridas, mas a potência máxima do poder curativo, capaz de secar lágrimas e extinguir queixumes, pertence ao Nicolau.
Posso vê-lo?
Se o Senhor Nicolau, tivesse chegado a médico, bem poderia tratar os doentes todos e os joelhos também.
Ir buscar o livro e pousá-lo sobre a mesa, deixar as mãos pousadas a seu lado, impedindo que o dedo guie as letras, é o começo. Afinar a voz para que saia constante e clara em voltinha transparentes de emoção, desagrava as ofensas involuntárias. Desgostar os crescidos que têm que nos amar, assusta.
Ler tudo sem soletrar e terminar com um suspiro e um sorriso, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e os olhos brilhantes de satisfação.
Linda menina!
Só falta mesmo o remate esmerado da inocente astúcia infantil, em tom doce de questão curiosa.
Como é Nicolau, em latim?
Mas sem falar da caixa. Os crescidos não gostam de explicar a caixa. Falam de voar para o céu e outras coisas sem sentido. Atrapalham-se, por nunca terem descoberto que ao afagar a brancura gordurosa do peito do Nicolau, o fazem agitar asas de Arcanjo, Miguel, poeta e escritor, ou pinguim. Se for doutor, trata joelhos rasgados.
É Nicolaus!
Como se fosse plural. É então, muito bicho igual a todos os bichos que juntou.
Depois, fica tudo perdoado.
O paizinho, já tocado pela loucura que no futuro o irá tomar por completo, continua a manter o aprumo. Abre a gaveta, escolhe de entre as camisas brancas, as que lhe parecem mais alvas e bem engomadas. Com todo o cuidado, acomoda-as uma a uma, na maleta pousada sobre a cama. Diligente, verifica pregas e alisa rugas, ajeita punhos e compõe colarinhos. Está tudo em ordem. Junta os fechos, afivela as correias, e sai para ir apanhar o navio. Tem assuntos de grande importância a tratar no continente, convém que se apresente à altura das circunstâncias. Mal transpõe a porta do quarto, é assaltado pela dúvida – Terei as camisas em ordem? Pousa de novo a maleta, abre-lhe a tampa e avalia – Esta vai em cima, para não se enrugar! Esta vai em cima, para não se enrugar! Esta vai em cima… Sai ligeiro rumo ao cais, não vá perder o navio.
A mãezinha, recém acostumada ao sobressalto que no futuro lhe vai consumir os dias, mantém o aprumo. Tira o casaco de fazenda do armário, aconchega o lenço ao pescoço, compõe os ganchos no cabelo. Deixa para trás, meia dúzia de camisas brancas sobre a cama. Sai apressada, evitando escorregar nos seixos da rua que leva à praia.
O dia está a acabar, o mar está calmo, os pescadores remendam as redes encostados ao casco dos barcos. Olham o homem parado ao fundo do trapiche, fixo no horizonte. Olham, remendam e comentam – Está outra vez, à espera do navio!
O paizinho volta para casa. Voltam os dois de mão dada. A mãezinha, traz maleta vazia.
Olham, remendam e comentam – Nesta ilha não atraca navio!
Deixa que chore!
Olha que se estraga!
E eu gelada, tremia.
Vinha a avó, muda e queda,
a acenar com a cabeça,
que sim,
que sabia
não ser imaginação
o frio que eu sentia,
se não te tivesse nos braços.
Muda e queda, dizia
Dá-lhe mimo!
Dá-lhe colo!
Dá-lhe muito, muito, muito!
Agora que tenho nove anos de idade, vou servir para casa de uns senhores que quiseram ficar comigo. A minha mãe disse-lhes que já sei fazer muita coisa. Sei pôr a comida ao lume e fazer as camas e lavar a roupa e deixar tudo asseado. Também posso tomar conta dos meninos, como faço com os meus irmãos. Sou eu que a ajudo a governar a casa, desde que o meu pai teve o acidente. Esteve muito tempo entrevado e o patrão teve que pôr outro no lugar dele. Depois, como ficou tolhido de um braço, o patrão já não o quis de volta. Foi ele que falou à minha mãe destes senhores, para onde vou. Acho que ainda são aparentados. Têm uma casa muito bem posta, com coisas boas e finas, e querem ter tudo sempre em ordem. A criada já está a ficar velha e a senhora é doente dos nervos, faz-lhes falta uma rapariga para ajudar. Antes do acidente, vivíamos remediados com o que o meu pai ganhava. Andei na escola até à segunda classe. Aprendi as letras, custa-me a ler, mas as contas faço-as todas de cabeça. A mestra até disse que eu havia de dar para os estudos. Por isso se a senhora me mandar fazer recados, ou ir ao mercado, não me deixo enganar nos trocos. O meu pai recomendou-me, que havia de ser sempre muita séria quando tivesse que apresentar contas aos senhores e que não devia querer nada que não fosse meu, mas que podia aceitar o que me dessem. Disse para só falar quando me perguntassem alguma coisa e para dizer sempre "desculpe", "se faz favor" e "muito obrigada".
Quem me ensinou a morte impura para se dizer? Quero falar do Telmo. Vou falar do Telmo. O Telmo está morto.
Conheci-o num desses altares de memória, adornados de flores e cera, que presumem vencer o esquecimento. Era recente a sua eternidade, recém acrescentada a minha saudade, também.
Nunca o conheci de outra forma. Tornou-se referência minha, num dia de desnorte. Perdi-me, sim! Perdi-me literalmente, num labirinto de ramos viçosos e flores murchas, retratos, nomes, datas, estátuas e estatuetas, cruzes e crucifixos, lamparinas, pedras lavadas, pedras sujas e gastas, montes de terra revolta, pequenos ressaltos de terra em que tropeço.
Desorientada, sem haver a quem chamar em auxílio, por inexistir quem venha por mim guiar o caminho, deixei-me cair de joelhos.
Não é bom chorar pela manhã, ao acordar. E eu não choro! Eu atiro-me para o chão e semeio a raiva como uma criança contrariada nos seus caprichos.
O Telmo sorria para mim, um perpétuo sorriso forçado de foto tipo passe. Gravados em bloco de granito cinzento, letras e números riscados na pedra, sobre o peito.
TELMO P.
xx-xx-1992
xx-xx-2014
ETERNA SAUDADE
Miúda mimada, de que é feita a tua dor?
Do mesmo pó e lama com que me choram?
Ergui-me.
Como te atreves?
E era logo ali. A dois passos.
O que busco não é nada, mas afeiçoei-me à lomba de terra, e no caminho o Telmo é referência.
… adivinha onde estou? Estou sem vontade de supor paradeiro incerto, em terra capital… Bem sei onde estás! … para mais, convém-me transparecer amuo por não poder ir a par (amuaaaar faz bem, como na canção)… Diz, se quiseres! Só depois me apercebo, que rigor das coordenadas é para consolo do meu despeito (mas não demores)… Na Igreja! Sabe como me desamarrar o burro, ainda assim muar que se preze, empanca … Então, procura Helsínquia, se existir! (pura pirraça) O mesmo que pedir desforra por ter ficado em terra. A menos que a peste lhe tenha fechado as portas, ou as modas lhe tenham mudado o nome, Helsínquia tem resistido sempre. Ouço os passos em busca… No gaveto do primeiro quarteirão, lado esquerdo!… a ofegar avenida acima, ainda me fala de Itália, para distrair com a cassata, mas estou virada aos lanches. Na esplanda senhoras de cabelo armado, blusas de seda e grandes óculos de sol, a bebericar limonada, enquanto abanicam discretamente os calores da época e da meia idade, fazem esvoaçar vaporosa conversa perfumada (onde é que eu já li isto?). Querida avó, tão cordial e elegante nas suas tardes de verão… por fim Está no sítio de sempre, mais moderna, para que saibas! E sei também que do outro lado, PA tem outro figurino, já não é Princesa. Resisto ao abuso de pedir confirmação, até porque, hora e mesa estão marcadas… Divirtam-se! … e as minhas pernitas magras, cansadas de balançar ao ritmo da prosa miúda de gente grande, num impulso me fazem saltar da cadeira, com rumo certo à Epifânio. Não sei ler placas de toponímia, nem coisa nenhuma. Ainda não. Hei-de orientar a memória como os pombos, pelas referências. A calçada diária, a igreja dominical, a curva, o declive, o trânsito muito e as pessoas muito mais, vão diminuindo como num funil até às escadas (não desço já) procuro a janela, quadrado que sempre me pareceu pequeno para iluminar a sala. Lá estou eu, final da tarde, à espera que me leve… Aonde?...ali adiante, a casa do tio… Mas qual tio?... Marcelo, diz meu pai. Querido avô, militarmente recto, paternalmente escandalizado… O teu pai fala de mais! (fala o que pensa e nada mais, pensei)…docemente enternecido a recusar parentesco e visita (ponto final). Mergulho nas estacas, antes de entrar. Ainda aí estás?... Adiante os Estados Unidos, na outra margem, Guilhermina das manhãs de sexta-feira: Mise en plis, unhas, buço e sobrancelhas, café, rissóis e croquetes… Estou cansada, volto outro dia…
Borbulha como poção mágica, fazendo tremer o caldeirão. Defendo-me a custo: na mão esquerda, o testo como escudo, à direita a espada de pau…
Eram danados para engendrar artimanhas. Nos primeiros dias, era juntar o risco de ser apanhado em flagrante com a falta de consistência; nem pensar! Lá pelo meio da semana, já se podia inclinar a malga e deixar que deslizasse inteira. Depois, era só pegar na navalhinha de capar grilos, e cortar-lhe a curva por altura do pólo sul. Logo ali e sem demora, a dividiam entre si, para que se derretesse na boca, enquanto remediavam o desfalque. Voltava tudo ao seu lugar, sem que ninguém desse por nada. Ao outro dia, se tornava a fazer sol, lá estava a tentação debruçada no peitoril da janela providencialmente aberta, a desafiar a gula. Mais uma volta e mais um paralelo era subtraído à socapa. Por essa altura, o hemisfério ficava reduzido a pouco mais que um disco delgado apoiado por uma rudimentar, mas eficaz, estacaria de gravetos. Aconchegada no seu lençol de seda perfumado a aguardente, muito composta, como se intocada por mãos tão gulosas como matreiras, a marmelada continuava a secar ao sol.
…Valha-me Deus, que horas são estas?!
Tanto quanto eu,
raparigas,
e eu só rapariga ainda,
não,
tinham já conquistado,
pela força do trabalho,
o nome de mulher,
As Mulheres da Seca!
Tão iguais e tão diferentes
fomos e somos,
mulheres!
Vamos dizer que bolos, são só lambarices, que abrem buracos nos dentes e fazem bichas nas tripas. Vamos fingir que isso dos bolos é tudo a mesma coisa e que de onde vêm ou quem os faz, pouco importa…
Contorna o balcão, para acompanhar até porta, e mais uma vez, felicidades e cumprimentos à família. Serão entregues. É uma simpatia, este senhor, todo ele cuidados e atenções para satisfazer a freguesia da sua, bem conceituada pastelaria.
Vai a caixa mais o bolo, pelo caminho, equilibrada com mil cuidados e ovos frescos misturados no açúcar branco, na alva farinha fina, manteiga derretida. Tudo na conta, peso e medida, que a perícia do pasteleiro, sabe transformar numa delícia.
Era o primeiro, sem o ser. Da pastelaria, já se provou a qualidade e lá se satisfez a gulodice, muita vez. Para este fim era o primeiro e terá um gosto estranho a coisa estranha, vai enrolar na boca, vai arranhar na garganta, já o pressinto!
Ao chegar a casa, sai o prato do armário, o de sempre, de porcelana com flores pintadas e estende-se a toalha do costume, bordada com flores iguais, e tudo o mais, que se junta em cima da mesa, à volta do bolo, que é o centro.
Tudo é tão igual e tão diferente!
Todos são os mesmos, mas não todos.
Elogios às rosas de açúcar e pérolas prateadas, às amêndoas finamente lascadas e os parabéns ao nome em arabescos de chocolate. Uma beleza!
Já nem os bolos são assim… Nem nunca o bolo assim tinha sido, porque era o primeiro e terá um gosto estranho a coisa estranha, e está na hora de provar que bolos são só lambarices…
Mas que tem o bolo?
Tem tudo, é muito doce, muito bonito! É altura de fingir que isso dos bolos é tudo a mesma coisa… sabe muito bem… só não tem o calor do forno, nem gosto das mãos da minha mãe.
Era o primeiro, e mal o provei, já o sabia, não passa na garganta!
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