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Diz quem já conseguiu lá entrar, que a casa de Arisco Esquivo pode ser um recanto agasalhado em dias tortos. Muitos, sem conhecer, pensam isto e aquilo da toca do bicho do mato. Pensa ele, que de pouco lhe valia passar meio sábado, quase meia vida, a limpar, a arrumar, a pôr tudo em ordem, se não fosse para abrir a porta quando batem. Quando menos espera, chega este e "Aí, que estou a ver a minha vida a andar para trás!", aparece o outro e "Nem queiras saber o que me aconteceu…". Vêm à procura do aconchego de uma casa que está a ficar velha. Antes que perguntem se podem, antecipa-se o Arisco: "É entrar, é entrar!". Por cortesia, trocam a ordem e chamam-lhe velha casa, "Com licença", sem imaginar os trabalhos por que passou, para poder agora, estar à disposição e pronta a acolher. Lá vão encharcados, pelo corredor fora, a carimbar a carpete com lama, para tomarem conta do sofá. Estendem-se ao comprido, antes de descalçar as botas e pedem um par de orelhas. "Aqui estão, para te ouvir!" diz o Esquivo sem acrescentar palavra, por saber que a melhor maneira de escutar, é estar calado. Agarram-se às almofadas, que amarfanham e regam de baba e ranho, fungam na ponta da mantinha em que se enrolaram e diluem o café em lágrimas, antes de o entornar. Até este ponto, Arisco Esquivo não se altera com a desordem. Reconhece que nem todos os bichos são do seu mato. A outras vidas, que quase inveja, alivia partilhar o fardo, porque depois de expor mágoas, nasce-lhes uma alma nova, decidida a agendar o fim do mundo para outro dia. Para comemorar, o Esquivo vai pôr ao lume mais uma cafeteira e o ar perfuma-se de conversas com aroma café. Enquanto ferve e não ferve, por distração e sem querer (o Arisco nunca acredita que alguém lhe desarrume a casa, por vontade própria) começam a levantar a ponta do tapete, abrem e fecham as portas dos armários, remexem nas gavetas. No fundo de uma velha arca, vão desencantar um trapo dobrado e guardado com mil cuidados. Prestáveis, quase como quem faz um elogio, resolvem sacudir-lhe o pó "Para ti é fácil, não te importas com o que os outros pensam!". É a vez de Arisco Esquivo entornar o café, mas como o seu mundo é quase todo por dentro, não se vê a olho nu, nódoa nem mancha. O que os outros pensam nunca o impediu de fazer o que quiser, e no entanto, o que pensam importa. Importa muito. Despede-os com um sorriso, fecha a porta e vai passar o outro meio sábado a limpar e a arrumar.
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