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Nem sobre os recomendados, ou os descobertos por acaso, nem os “no tempo certo”, ou os "antes do tempo". Isto estava destinado a ser sobre os “depois do tempo”, ou seja, os que tinham tudo para ser excelentes, mas por atraso na leitura acabaram insossos.
Espera-se compreensão, depois de
“Quando você se requebrar,
caia por cima de mim,
Caia por cima de mim,
caia por cima de mim”
é impossível, não transviar.
De qualquer forma, se é para dizer o que já foi dito, que seja asneira…
“Isto anda tudo baralhado! No meu tempo…”
“Ò senhor, no seu tempo, o quê!? O tempo não é seu, é de quem o faz!”
“Mas isto é um carnaval! Dantes…”
“Dantes, também andava você feito gaja boa, ou pensa que eu não me lembro!? Batom vermelho, salto agulha e pernas ao léu, com as meias a encher-lhe o soutien! Tudo como manda o figurino!”
“E isso, o que tem!? Olhe que eu como senhorita até era muito elegante, e..."
“ E fácil de engatar!”
“... e são três dias, para uma pessoa não morrer parva, depois acabou-se!
“Pois, pois, chega às cinzas e veste a farpela de Don Juan Conquistador. Todo bem falante, armado em espadachim de língua afiada e o paleio mais retorcido que os bigodes!
“ [...] ”
“ Então!?” Não diz nada?”
“ [...] ”
“ Entupiu? Desembuche, homem!”
“ Não é Don Juan… É ZORRO!!! Anda tudo baralhado!”
“Quando você se requebrar,
caia por cima de mim,
Caia por cima de mim,
caia por cima de mim”
Esta é uma daquelas coisas que vieram do tempo da peste como consequência dos seus sucessivos confinamentos. O objetivo era, em colaboração, reunir num calendário de datas lidas, um ano completo de dias vividos nos livros.
Se a ideia, que desde logo me atraiu, parecer esquisita, a meu favor tenho o facto de não ter tido origem nesta cabeça.
O desafio dirigia-se a qualquer pessoa que goste de ler (muito), e eu até leio alguma coisa, no entanto, ao contrário dos bons leitores, não tenho por hábito sublinhar ou anotar, nem faço pausas para refletir, nem retiro lições do conteúdo. Nada que permita fazer o brilharete das citações. Sou, por isso, uma reles leitora e para contribuir para o calendário, tive que recuar a leituras antigas e folhear páginas passadas, como quem procura desesperadamente por aquela notinha de cem mil réis, guardada para um momento de aperto. Escolhi desencovar as mais esquecidas entre as esquecidas. Juntei umas quantas entradas, que não estou certa de ter partilhado.
Entretanto passou a praga, e todas as suas angústias e boas intenções. Tanto quanto sei, o calendário completo não deu em nada.
Numa leitura recente encontrei uma data, tive vontade de a somar à lista e compor o meu próprio calendário, que de tão desfalcado até dá dó.
Janeiro
“No entanto, se fôssemos irmãos, certamente seríamos gémeos, visto que, após deixar a escola do Dr. Bransby, soube acidentalmente que o meu homónimo nascera em 19 de Janeiro de 1813 - e a coincidência é notável, pois trata-se precisamente do dia em que eu próprio nasci.”
Edgar Allan Poe
William Wilson
“Toda a gente, no entanto, esteve de acordo para considerar estas adendas como cláusulas de estilo e na noite de 25 de Janeiro uma alegre agitação encheu a cidade. Para se associar à alegria geral, o prefeito deu ordem para que fosse restabelecida a iluminação do tempo em que havia saúde.”
Albert Camus
A Peste
Fevereiro
Naquele mesmo dia (3 de Fevereiro de 1893), Van voltou a gratificar o já bem azeitado porteiro a fim de que ele
respondesse a quaisquer perguntas sobre Veen, formuladas por qualquer visitante (e em especial pela viúva de um dentista que costumava passear com um cão-lagarta), com um breve grunhido de total desconhecimento. O único personagem que Van tinha esquecido de levar em conta era aquele velho patife comummente retratado como um esqueleto ou um anjo.
Vladimir Nabokov
Ada ou Ardor
Março
“A 9 de Março de 1711, um tal James Welch desceu ao meu camarote e disse-me que o comandante ordenara que eu desembarcasse. Procurei em vão discutir com ele; nem sequer me comunicou o nome do novo comandante.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Abril
“O bebé de Muriel nasceu no dia 27 de Abril. Um rapaz: Thibaut. Decididamente, Igor Dimitrievitch não conseguia habituar-se a este nome. Foi Bernard quem lhe telefonou a dar a notícia. Ele exultava do outro lado do fio:
-Tem um bisneto! Muriel suportou lindamente o parto! A criança é esplêndida: quatro quilos!”
Por mais que Igor Dimitrievitch se esforçasse por atingir uma alegria apropriada, tudo, nele, permanecia frio. Este recém-vindo ao mundo não lhe era nada. Como havia de se interessar por um ser que nem sequer veria crescer?
Henry Troyat
O bater solitário do coração
Maio
“Após três anos na expectativa de que as coisas melhorassem, aceitei uma oferta vantajosa do comandante William Prichard, que iria rumar o seu Antelope para os mares do Sul. Zarpámos de Bristol no dia 4 de Maio de 1699. De início, a travessia correu sem problemas.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Junho
“Era uma composição delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E, terminando, dizia-lhe que não era "nos esplendores das salas" ou nos "bailes febricitantes" que gostava de a ver; era ali, naqueles rochedos, “Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante”
— Que bonito, hem!
Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:
— Farol da Guia, 5 de Junho!
Mas o relógio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, meteu o poema no seio.”
Eça de Queirós
O Primo Basílio
Julho
“Foi nesse mesmo dia que Miss Hurst pôde registar no seu caderno de notas o sintoma fatal que espreitava no crescimento da exaltação amorosa de Adriano. Transcrevo:
15 de Julho de 1946
Enfim! Primeiro sinal de licantropia.”
Natália Correia
A Ilha de Circe
“Ora, na tarde de 15 de Julho de 1689, o abade de Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava à beira-mar com a senhorita de Kerkabon, sua irmã, para tomar a fresca. O prior, já um tanto avançado em idade, era um excelente eclesiástico, muito amado pelos seus paroquianos, depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe valera sobretudo grande consideração é que era o único clérigo da província que não precisava ser carregado para o leito depois de cear com os seus confrades. Sabia muito corretamente a sua teologia e, quando cansado de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais: de modo que todos diziam bem dele.”
Voltaire
O Ingénuo
(História verdadeira, tirada dos
manuscritos do padre Quesnel)
Agosto
“Por volta de 15 de Agosto tinham diminuído notavelmente em intensidade e espessura os vapores projectados para o céu. Dias depois já o terreno exalava apenas ligeira fumaça, último alento do monstro encerrado no seu túmulo de pedra.”
Júlio Verne
Da terra à lua, viagem directa em
97 horas e 20 minutos
Setembro
“O dia em que devia realizar-se o concerto foi por fim fixado: 29 de setembro.
Faltavam, pois, dez dias. Laura propôs ao marido que não os passassem em Saint-Malo. Que necessidade tinham de juntar ao perigo d'ella ser reconhecida no concerto, o risco de a reconhecerem nos ensaios?
Alfred Sirven
O Romance d'uma cantora
“O telegrama chegou ao Funchal através de Londres, dirigido ao cónego Nicolau Villa e assinado por Harry Bradshaw, médico. Dizia: “Marcos informa morte Raquel dando à luz Clara dia 29 Setembro stop Marcos criança e ama seguem Madeira dia 12 paquete Annie.”
Helena Marques
O Último Cais
Outubro
"Van recebeu este telegrama audacioso junto com o café da manhã no sábado, 10 de Outubro de 1905, no Manhattan Palace em Genebra, e naquele mesmo dia partiu para Mont Roux, no lado oposto do lago. Lá se instalou no hotel de sempre, Les Trois Cygnes. Seu concierge, um homenzinho frágil e de idade quase mítica, havia morrido durante a última estada de Van, quatro anos antes; em vez do rosto enrugado de Julien e do discreto sorriso de misteriosa cumplicidade que brilhava como uma lâmpada por trás de um pergaminho, foi a cara redonda e rosada de um ex-mensageiro, usando agora uma sobrecasaca, que deu boas-vindas a um Van velho e gordo."
Vladimir Nabokov
Ada ou Ardor
“E, antes de mais nada, ocorre ponderar que António José goza de uma reputação sobre palavra. A fogueira de 18 de outubro de 1739 iluminou-lhe a figura de maneira que o puderam ver todos os olhos; a tragédia do Sr. Magalhães vulgarizou-o entre as nossas platéias de há 40 anos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exige constância e esforço, embora de certo modo os pague. Pode-se dizer, sem erro, que ele pertence à família dos poetas cômicos, qualquer que seja o grau de parentesco, — com a circunstância que era um desperdiçado, — trocava a boa moeda do cômico pelo cobre vulgar do burlesco.”
Machado de Assis
Relíquias de Casa Velha
Novembro
“O dia 17 de Novembro de 1897, diz Brita e Kristoffer põe um braço em volta dos ombros de Brita lentamente Kristoffer e Brita começam a ir pela Estrada Pequena acima, e Brita leva Asle nos braços
0 Asle morreu a 17 de Novembro de 1897, diz Brita
E nasceu a 17 de Novembro de 1890, diz ela
e Kristoffer pára, e Brita pára, ficam a olhar para a terra
castanha, e então a porta da Casa Velha abre-se e aparece uma velha que sai e se detém na laje da entrada e Kristoffer
olha para ela
Partiu, o Asle partiu, Avó Ales, diz Kristoffer”
Jon Fosse
é a ales
“Acabei por ceder, pensando ser a melhor solução. A 24 de Novembro abandonava Lisboa a bordo de um barco mercante inglês, sem sequer indagar o nome do comandante.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Dezembro
“Assim abandonei a minha ilha em 19 de Dezembro de 1686, como vi nos cálculos que fiz no buque, após ter nela vivido vinte e oito anos, dois meses e dezanove dias. Fui libertado deste segundo cativeiro no mesmo dia do mês em que anteriormente fugira, numa chalupa, da escravidão dos mouros de Salem.”
Daniel Defoe
Robinson Crusoe
“Tornou-se bem poética, para mim, essa Amarante, depois de haver desaparecido com o século XIX, ao bater a meia noite de 31 de Dezembro de 1899. Nesse momento, que podemos considerar extraordinário, um estalido, como um tiro de pistola, fendeu, de lado a lado, a mesa do refeitório, pouco distante dum pequeno fogão de ferro, em volta do qual, eu, meus pais e irmãos, esperávamos ouvir, na vizinha torre de São Pedro, a última badalada das doze, aquele dia em que, no silêncio nocturno, se extinguiu, com todo o século das luzes. Entre a última badalada fatal e o
estalido da mesa, medeou apenas o tempo bastante para se distinguir um som do outro.”
Teixeira de Pascoaes
Uma fábula:
o advogado e o poeta
Feliz Ano Novo!
Estou certa de que era Domingo. A feira sempre foi ao Domingo, não sei se o último ou o penúltimo do mês, mas sempre no primeiro dia da semana. Há quanto tempo, não sei. Neste século, certamente. Foi escolhido à pressa, sem critério nem vontade, depois de ter revirado a banca em busca não sei de quê. Veio comigo por minha vergonha de não reconhecer os tesouros, no meio de tanta quinquilharia. Sou bruta… Adiante!
A noite passada deitei-me de novo com o Syme. Há quanto tempo! Talvez por conta da névoa, ou quem sabe, seja efeito da fumarada que a salamandra dos vizinhos larga pela chaminé, acordei Sexta-feira — Sem fé suficiente para acreditar na matéria — hoje é Domingo, e não há feira!
Tenho a estranha sorte de ter o sono limpo de sonhos. Desafiar o entendimento, em nada altera a noite, mas pode transformar a manhã.
Esfregou as mãos no avental branco para se assegurar de que estavam limpas.
"Homem-da-boia, ao ser dispor!"
Estranhei a mesura, não a sua presença. Sempre lá esteve, no entanto, por motivo que me escapa, nunca me tinha demorado neste homem. É natural que volte agora, para que se deixe conhecer.
"A comida dele está pronta."
Lentamente, cruzou os braços por cima do arco da barriga como quem aguarda com paciência por resposta depois de ter dado o primeiro passo. Era a minha vez.
"Já não será necessário, ele…"
A cadência com que indicador direito batia acima do seu cotovelo esquerdo, revelava um certo desconforto.
"Estou a par do sucedido! É de lamentar…"
Deu ao rosto redondo uma expressão grave de pesar e em simultâneo arredondou os braços no arco inverso, tentando juntar os dedos sob a barriga.
Percebi que por aí não era caminho, tentei corrigir a rota.
"Podia ter sido diferente?"
Encolheu os ombros, recompôs o rosto.
" Fiz o que faço sempre, atender à boa vontade das amizades, contar as pratas, alimentar falsários…"
"Seria este o caso?"
De novo as suas mãos se esfregaram no avental.
"Tem toda a razão, o caso é outro… Ouviu os boatos?"
Finjo-me acima dos rumores, contudo ambos sabemos que os conheço.
"Se me permite que lhe diga, nem cartas, nem extravios! Foram os biombos, os muros… toda espécie de alvenaria. Acredite, foi a parede!
Ao que está completo, nada posso acrescentar, mas por muito que o negue, a cabeça pede um sentido.
Fim de um dia na bola de lama e já outro começou. Cansada do formigueiro, ainda ouço o gigante discorrer sobre os mortais:
"...a nenhum vi que não tivesse mais desejos que verdadeiras necessidades, e mais necessidades que satisfação."
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