Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Setembro

por esquisita, em 08.09.23

 

Tarde amena de Setembro convida a um passeio pela cidade. Resolvem sair juntos, avenida acima, avenida abaixo, às voltas por aqui e por ali, falam com este e com aquele, meia volta ao redondel, e ainda é cedo para o lanche. Acabam por se desemparelhar por mútuo acordo. Cada um vai para seu lado espairecer, e fica combinado reunir mais tarde, na livraria. Para ele, a livraria é um abrigo que o mantém a salvo da praga dos trapos, enquanto ela vai ver as modas, para se entreter. O que cada um faz desligado, só a si mesmo diz respeito.
Quando retorna ao ponto de encontro, ela vem enfastiada de tanto ver e desolada por pouco poder comprar. Trás o ânimo contrariado e antes de o procurar, escolhe ao acaso um qualquer livro que a roda da fortuna ou o escaparate dos destaques determina ser uma fotobiografia. Vai folheando, sem pressa nem especial interesse: austero pai, matrona mãe, fato à marujo na infância, pose galante enquanto jovem, já com bigode a dar ares de quem vai ser. Vem depois a dedicada esposa, os filhos, um atrás do outro em escadinha, registos da vida privada, primeiras menções em recortes de jornal. Seguem-se amizades ilustres, influências de renome, correspondência menor, pequenas notas guardadas para obra maior. Mais adiante a ascensão e a glória do reconhecimento em vida e vai o livro a caminho do fim, os últimos anos, a saúde debilitada, o recatado enterro e a trasladação monumental. Numa espécie de apêndice, miscelânea de temas avulsos, vira-se a página decisiva. De tantos retângulos em gradação cinzenta, um reflete um tom familiar. O retratado, em fato ligeiro à beira mar, recua para segundo plano, enquanto o cenário se destaca ganhando cor. A praia que ambos tão bem conhecem, a do primeiro encontro de verão, tal como era antes, preservada da erosão do tempo. A legenda confirma a vontade de partilhar a descoberta e ela procura entre as estantes, o sofá desconjuntado pelo uso excessivo, onde ele provavelmente se foi acomodar. Quer fazer surpresa, apanhá-lo pelas costas, pôr-lhe a imagem à frente dos olhos, como se fosse uma prenda da memória. Aproxima-se com cautela, não se vá desfazer o efeito da revelação. Espreita-lhe por cima do ombro, descobre o que está a ler. Pousado nos joelhos, tem ele o mesmo livro, aberto na mesma página. Assim que recuperam do espanto, entendem ser esse um sinal inequívoco do destino, que lhes foi enviado pelas forças cósmicas da coincidência. Analisam e concordam estar perante um presságio favorável à união.
Não fosse a dificuldade em encontrar uma quinta disponível, (e sem quinta, nada feito) casariam nesse mesmo dia, antes de se pôr o sol.
Confirmando as melhores expectativas, o enlace não vingou. Resolvem voltar juntos para casa, porque não tarda o tempo vira, e deixaram roupa lá fora a secar, numa tarde amena de Setembro.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.


Posts recentes


Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D