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Tarde amena de Setembro convida a um passeio pela cidade. Resolvem sair juntos, avenida acima, avenida abaixo, às voltas por aqui e por ali, falam com este e com aquele, meia volta ao redondel, e ainda é cedo para o lanche. Acabam por se desemparelhar por mútuo acordo. Cada um vai para seu lado espairecer, e fica combinado reunir mais tarde, na livraria. Para ele, a livraria é um abrigo que o mantém a salvo da praga dos trapos, enquanto ela vai ver as modas, para se entreter. O que cada um faz desligado, só a si mesmo diz respeito.
Quando retorna ao ponto de encontro, ela vem enfastiada de tanto ver e desolada por pouco poder comprar. Trás o ânimo contrariado e antes de o procurar, escolhe ao acaso um qualquer livro que a roda da fortuna ou o escaparate dos destaques determina ser uma fotobiografia. Vai folheando, sem pressa nem especial interesse: austero pai, matrona mãe, fato à marujo na infância, pose galante enquanto jovem, já com bigode a dar ares de quem vai ser. Vem depois a dedicada esposa, os filhos, um atrás do outro em escadinha, registos da vida privada, primeiras menções em recortes de jornal. Seguem-se amizades ilustres, influências de renome, correspondência menor, pequenas notas guardadas para obra maior. Mais adiante a ascensão e a glória do reconhecimento em vida e vai o livro a caminho do fim, os últimos anos, a saúde debilitada, o recatado enterro e a trasladação monumental. Numa espécie de apêndice, miscelânea de temas avulsos, vira-se a página decisiva. De tantos retângulos em gradação cinzenta, um reflete um tom familiar. O retratado, em fato ligeiro à beira mar, recua para segundo plano, enquanto o cenário se destaca ganhando cor. A praia que ambos tão bem conhecem, a do primeiro encontro de verão, tal como era antes, preservada da erosão do tempo. A legenda confirma a vontade de partilhar a descoberta e ela procura entre as estantes, o sofá desconjuntado pelo uso excessivo, onde ele provavelmente se foi acomodar. Quer fazer surpresa, apanhá-lo pelas costas, pôr-lhe a imagem à frente dos olhos, como se fosse uma prenda da memória. Aproxima-se com cautela, não se vá desfazer o efeito da revelação. Espreita-lhe por cima do ombro, descobre o que está a ler. Pousado nos joelhos, tem ele o mesmo livro, aberto na mesma página. Assim que recuperam do espanto, entendem ser esse um sinal inequívoco do destino, que lhes foi enviado pelas forças cósmicas da coincidência. Analisam e concordam estar perante um presságio favorável à união.
Não fosse a dificuldade em encontrar uma quinta disponível, (e sem quinta, nada feito) casariam nesse mesmo dia, antes de se pôr o sol.
Confirmando as melhores expectativas, o enlace não vingou. Resolvem voltar juntos para casa, porque não tarda o tempo vira, e deixaram roupa lá fora a secar, numa tarde amena de Setembro.
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