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É Domingo.
De novo começa a semana, já sem Maio bastante para a preencher. Esgota-se o tempo, sem que se cumpra a promessa de água.
Depois da missa, o adro está coberto por um dossel de veludo cristal estofado nas nuvens, que rangem e roncam antes de estourar como foguetes. Nem um borrifo que chegue das alturas, para acamar o pó solto nas corridas das crianças ao sair da igreja. Dizia o pai de Isabel, por ter ouvido no sermão, que chuva em Maio é sinal de boas águas. Estaria a saudar a chegada do Inverno noutras paragens, e nós por cá caminhamos para um sempre Verão. A luz densa, coada pelo chumbo de ameaça líquida, é sinal, mas só sinal, sem águas, nem sermão. Falta água e dessa falta se inquieta o futuro, nas conversas saturadas do opressivo calor. Queixam-se vozes arrastadas em gargantas secas, das cefaleias presentes, trazidas pelo insustentável peso do ar. Da pressão, da carga elétrica, da enorme consumição de não ter água, se lamentam.
Abeira-se à porta o prior, para despedir os fiéis na cerimónia do envio ao almoço dominical. O céu torna a rugir e do alto respinga uma gota gorda. Escorrega duvidosa na testa, talvez um bago de suor. E logo outra, e outra, e outra a fazer diluir as gentes estagnadas no adro. Almas penadas e pingadas, à procura de abrigo, por ter chegado a bendita água. Água sólida e redonda, vinda do céu. Sem demora, se vai maldizer o chuveiro de berlindes.
Assim é o Domingo.
Estou certa de que era Domingo. A feira sempre foi ao Domingo, não sei se o último ou o penúltimo do mês, mas sempre no primeiro dia da semana. Há quanto tempo, não sei. Neste século, certamente. Foi escolhido à pressa, sem critério nem vontade, depois de ter revirado a banca em busca não sei de quê. Veio comigo por minha vergonha de não reconhecer os tesouros, no meio de tanta quinquilharia. Sou bruta… Adiante!
A noite passada deitei-me de novo com o Syme. Há quanto tempo! Talvez por conta da névoa, ou quem sabe, seja efeito da fumarada que a salamandra dos vizinhos larga pela chaminé, acordei Sexta-feira — Sem fé suficiente para acreditar na matéria — hoje é Domingo, e não há feira!
Ordenar o tempo,
dar nome às coisas, forma aos recortes,
descolar pessoas, alisar as voltas, desembrulhar,
aproveitar retalhos,
adivinhar os laços,
desatar os nós, juntar as pontas,
equilibrar a torre,
equilibrar a torre,
equilibrar a torre...
Deixar cair!
Reerguer, sacudir, remendar…
Sou aprendiz de equilibrista,
a fazer acrobacias no gume da sanidade!
À primeira hora, antes de chegar
seria fermento, terra a levedar
Desse chão se vai erguer,
pela vontade de outro dia,
a fome de amanhecer
Que nome lhe posso dar?
Não sei...
Tempo que é agora, antes de partir
acende a fogueira de algum existir
Nessa chama, a arder, a alastrar
como sopro, semente de cinza,
sem ter um nome,
teima em lavrar
Posto está o sol, depois de brilhar
derrete nas águas o sal desse mar
Sopra vento que anoitece,
alisa a onda que embala,
cala a luz e adormece
Se amanhã, à primeira hora,
se pode tornar chamar,
não sei...
Chove uma chuva de já não ser, a molhar sem piedade
Chove um frio de já não estar, a gelar o caminho alagado
Chove um vento de já não poder, a soprar o que restou
Chove, mas não sou eu
Enquanto for piedade
Enquanto houver caminho
Enquanto restar poder
Chove, mas não sou eu
Porque eu não sei chover
Insignificante grão de areia, único e indistinto, absolutamente solto, mas sem ser livre. Rola e voa, mas só o sopro o fará duna, se a água não o levar. Nenhum outro toma o seu lugar porque não há sítio que lhe pertença e todo sítio é seu.
Tantas voltas dará, entre tantos e como todos, até ser pó. Depois do pó, nada, ou vento, ou mar ou tudo o que sempre foi.
Sabe-se mínimo e quer-se mínimo para ser imenso no areal, e só no areal é grande sem nunca ser o areal.
Quem sabe se não foi o grão de areia que gripou o rolamento, que encravou o mecanismo, que fez parar a máquina, que… Que me vai trocar as voltas. É melhor ir ver, antes que me estrague o fim de semana.
Insignificante grão de areia!
Há coisas que não se dizem e muito menos se podem escrever
Onde quer que ela esteja…
Onde quer que ela esteja…
Não me repitam: onde quer que ela esteja…
Eu sei onde ela está! Também lá estavam, também viram a terra na minha mão,
Como fui capaz?
Não me digam que foi cedo demais! Não existe tempo justo!
Não me falem de estrelas mais brilhantes,
Já lá estavam ontem, são as mesmas, brilham indiferentes!
Não me convençam a guardar a vida na memória,
Já vi a vida dispensar a memória, no mais cruel existir sem ser.
Não me confortem o sofrimento com o sofrimento que conhecem...
Quero a dor, é minha! Não quero que nada nem ninguém a diminua!
Mas porque não me avisaram do desejo de escavar, de desenterrar, de desfazer o que está feito?
Porque não me explicaram a fúria de rasgar o céu e explodir constelações?
Porque não me disseram da raiva de ter ficado para trás, num abandono injusto?
Sempre soube que a ousadia seria esmagada pela impotência, ainda assim, ousei. Não ouvi...
Agora ouço, claramente:
Nada podes!
Disse e escrevi
"... hoje é o último dia…" foi a primeira frase que ouvi no rádio, enquanto tentava acordar...
Já perdi a conta ao número de vezes que anunciei a desgraça. Nuns dias com mais calma, com detalhe e recomendações adicionais, noutros poupando nas palavras, resumindo o essencial, ganho coragem e faço a declaração.
Se a pergunta é feita hoje é hoje que tudo começa.
E amanhã pode ser:
"O que é isto tudo, que para aí anda?"
ou, em qualquer outro dia, qualquer outra pergunta, repetida na mesma inquietação sincera da primeira vez, aguardando por resposta. Se a resposta chegar hoje é hoje que tudo começa.
Eu hesito por uns segundos, avalio a força que tenho, peso os estragos que as minhas palavras podem causar e torno a ser o mensageiro da desgraça.
A surpresa genuinamente repetida:
"O que nos havia de acontecer!"
É hoje o primeiro dia!
"Tudo o que muda amanhã" leio na primeira página do jornal
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