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Paramos para falar de intimidade e privacidade, de expor e de esconder. e o que é, e o que queremos. Trazem-se à baila os diários, que eu quase nego ter, mas logo desfaço para não ter que morder a língua mais adiante.
Tive e devo continuar a ter um diário, perdido numa qualquer gaveta. É pequeno caderno que alguém julgou adequado oferecer a menina em início de adolescência, para que nele segredasse as suas confidências.
Esse livrinho acolhe entre capas rígidas, folhas brancas, agradáveis ao toque e ao olfato, que são guardadas por uma fechadura. Só de pensar em tão rudimentar pinchavelho como guardião da intimidade que se possa confiar ao papel, sinto os músculos da face contraírem-se num sorriso de ternura. Noutra curva, a conversa há de tornar a juntar fechaduras e intimidade, e aí os ânimos serão outros. Por ora, fico-me pelo pelo sorriso, que esta fechadura vale pelo simbolismo e pouco mais valerá…
O Meu Diário, conforme o próprio se intitula em letras douradas, tem vindo a morder-me os calcanhares desde há longos anos, sem que eu nunca lhe tenha verdadeiramente desejado a companhia nem tão pouco tenha reunido coragem de lhe dar um pontapé.
Viajou clandestinamente desde a minha casa primeira, acomodando-se incógnito entre livros e cadernos, para garantir um lugar no primeiro cantinho a que chamei, meu. Trazia a fechadura bem trancada, mas sem chave com quem casar, nem memória do teor do registo protegido.
Sendo a curiosidade um bicho tão guloso como bem servido de engenho, tratou de desmontar a fechadura com mil cuidados e satisfez a vontade com a polpa do apetecido fruto. Muito pouco sumo para tão minucioso trabalho! Uma só entrada, em caligrafia irregular, a descrever o quotidiano banal e sem sabor de um dia de aulas. Uma desilusão escusada, tivesse eu em mente a minha inata tendência de fugir à escrita. Ainda assim a emoção, consolada pela doçura da memória, resolveu deixar recado para o futuro, repetindo a fórmula anterior - o que de mais banal se possa ter passado no próprio dia e acrescendo-lhe, sem grandes pormenores, o mais marcante dos anos faltosos no assento. Findo o registo, devolveu-se a fechadura à sua forma original e tornou o diário à primeira gaveta disponível.
Tem sido assim que a espaços largos e conforme o acaso me faz tropeçar no diário, se tem repetido o ritual, preenchendo por ordem cronológica as já não tão brancas páginas. Por outras palavras: o meu diário resume a trivialidade do dia em que se escangalha a fechadura, seguida de um rol de encontros e desencontros, conquistas e derrotas, começos e despedidas, tudo alinhado secamente e sem grandes floreados. Porque se recompõe a fechadura, não sei dizer ao certo. Talvez seja porque estando fechada se torne mais desafiante ou até mesmo um pouco provocadora.
Coisas da intimidade e privacidade, talvez…
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