Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Filhas do (mesmo) pai

por esquisita, em 13.03.24

 

Vinha desvairada, largava fogo pelas ventas e chispas pelos olhos. Saltou abaixo da carroça e uivou
– Ide, ide! Voltai sem demora para o criador!
nisto, desata a enxotar as almas todas com o cabo da gadanha
– Andor!
– Falta-te um! Qu’é dele?
A fúria que trazia enrolada ao pescoço fê-la abrir as goelas, alto e bom som
– Não é vossemecê que sabe tudo o que se passa ainda antes que aconteça!?
– Então rapariga! Que modos são esses!?
A víbora que lhe sufocava a garganta alassou as voltas.
– O respeitinho é muito lindo!
Desta vez nem tugiu nem mugiu.
– Vá, desembucha! Qu'é dele?
insistiu o pai.
Deixou-se calada, a remoer.
De mansinho, abeira-se a irmã em seu auxílio.
– Bem conhece o sucedido! Nada se passa sem que primeiro o tenha engendrado. Que proveito lhe trás, que ela reconheça a falta?
– E tu com isso!?
se as quisesse assim amigas, não as teria feito tão diferentes
– Não te metas ao barulho! Contas são contas, e é só a ela que as estou a pedir!

As irmãs trocaram um olhar intrigado. Não era a primeira vez que um ficava para trás e era certo e sabido que mais cedo ou mais tarde cá haveria de tornar. Porquê aquela teima em que lhe contasse o que houve?

– Quer então que lhe dê satisfações!? Pois aí tem: quiseram-me, mesmo sabendo quem sou, porque não haveria eu de aceitar?
– Não é daí que vem mal ao mundo! acresceu a outra, mas ele fez orelhas moucas à achega
– Deixa que fale! E depois?
- Sendo eu madrinha, quis prendar o meu afilhado e fiz do rapazola um doutor…
– Um doutor da mula russa, queres tu dizer! À conta do vosso acordo, andou ele a intrujar quantos pôde…
– Quantas trapaças há no mundo, sem que o senhor lhe ponha a mão para as corrigir!
tornou a irmã, sem o conseguir interromper
– … na primeira curva trocou-te as voltas e a cabeceira pelos pés, para te comer as papas na cabeça! Lindo serviço!
A estocada foi direta ao orgulho e ela mais não pode do que soprar com bafo gélido
– Fui enganada, bem sei!

A irmã apiedou-se dela. Quanta dor ninguém a querer, tanta solidão fugirem dela, profunda raiva tudo fazerem para a enganar. Quis abraçá-la, chegar ao seu peito imenso aquela figura descarnada e ressequida para lhe dar algum conforto. Mas não se podiam tocar. Nunca puderam. Sempre e só uma podia prevalecer sobre a outra.
Estava derrotada, mas faltava ainda que se fizesse luz

– Aceitaste ser comadre do homem que me rejeitou para padrinho, foi o que foi! Parabéns Comadre Morte!
Estava explicado o azedume do senhor pai.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.


Posts recentes


Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D