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Como é que uma velha centenária, estafada pelos anos e gasta por gerações, pode ter tantos pretendentes? Olha para a quantidade de cartões e bilhetinhos que te deixam ficar por debaixo da porta! Não faças caso deste azedume logo à entrada, que desconfio não ser mais do que ciúme. Sem rodeios Tenho interesse! Sei o que vales e estou disposto a pagar! E eu tenho medo de te deixar cair … Sabem lá, eles, alguma coisa! Tudo ao lixo e adiante, que não foi a isto que vim! Deixa lá ver de te queixas… Dizes, então, que o estuque do tecto está a descascar!? São sintomas da idade, tem paciência! Onde é que é mesmo? Na sala? Não digas mais, o aparador está polvilhado pela caliça, que nem rabinho de bebé coberto por pó de talco. Deixa estar, eu limpo… gosto do toque macio desta madeira encerada, e ainda gosto mais do cheiro que conserva ao fim destes anos todos. Sabes o que dizem? Pinho manso cheira a pinhão, não importa o tempo que passa. Não é pinho, esta madeira. Não sei, nem tenho mais ninguém a quem perguntar, que fruto deixou por dar a árvore, para se fazer armário. O quê!? Não me venhas com poesias, aroma a dia de festa, brindes à saúde, risos e abraços, são perfume acrescentado pela memória, não há madeira que… Espera! Não te quero assustar, mas o caso é capaz de ser mais grave! Parece água… pinga, pinga, pinga… só me faltava mais esta! Uma infiltração! Pelas minhas contas, este tecto é o avesso do terraço, deixa-me orientar: cinco passos do fogão à porta da sala, mais dois em frente, quatro à esquerda. Vou lá cima ver o que se passa. Escadas que descem até ao pátio das avencas, escadas que sobem até ao patamar dos cactos…Mas o que é isto!? A viela está toda suja, outra vez! Já percebi, as andorinhas ainda não foram embora! É Novembro, talvez se deixem ficar para o Natal… talvez façam como as cegonhas, vão ficando, vão ficando, e… Não, não me estou a distrair com outros assuntos! São degraus e mais degraus, lá está o galo virado a Norte, em cima da chaminé. Ora, se aqui é a chaminé, lá embaixo deve ser o fogão, agora é só ir em frente, vira para um lado, torna a virar, pareço uma abuíta. Abuíta, deve ser ave doméstica que não tem poiso no dicionário, hei-de investigar… Achei! É por aqui que entra a chuva, o mais certo é teres a placa rachada! Está-te a rir!? Pronto, tens uma fissura na laje, está melhor assim!? Vou buscar ajuda, não te aflijas, eu volto! Enquanto puder, eu volto! Outra vez escada abaixo, para depois subir e tornar a descer, quem sonhar contigo, deve ter os desejos muito… Olha, mais um cartão! Este traz foto colorida, meio corpo em semi perfil. O rapaz é jeitoso, sorriso insinuante, braços cruzados e o contacto: Ligue-me! Não será caso a considerar!? Calma! Estou na reinação! Só me dás trabalho mulher, mas sossega que estou só na reinação!
Esta casa centenária, cada vez mais vazia, já resvés ao abandono, continua a espantar, pela força que a mantém erguida…
Velhos vizinhos, que já nasceram vizinhos de pai e mãe, não usam telefone ou telemóvel. São vizinhos velhos na idade e no costume de pôr pernas ao caminho para se apresentarem de corpo inteiro. Falam-nos de viva voz, olhos nos olhos, no tempo certo.
Arrastam os pés pela calçada irregular, em passos pequeninos de medo, atravessam a rua, batem à porta:
Aqui estou eu, para tomar parte no sucedido!
Vêm confirmar as suspeitas, e acalmar o desassossego que os tomou pela madrugada, ao verem as paredes do quarto tingidas de azul intermitente.
Contam da aflição que sentiram, e contam poder valer no que forem capazes.
Trazem no bolso, um frasco meio de mel, caso o mal seja do peito, mais a recomendação a um parente que trabalha no hospital, sempre disponível para o que for preciso.
Pouco mais podem, do que gestos e palavras, conforto e esperança.
Partem, deixando a promessa de voltar em breve, por melhores notícias. Entretanto, e à cautela, juntam as dores vizinhas às suas preces.
Velhos vizinhos, escoram a casa…
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