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Ao sábado, se os rapazes arranjavam algum biscate, o grupo ficava dividido. Juntavam uns bons trocos a fazer cargas e descargas, na substituição de cartazes publicitários, em pequenos arranjos e demolições. Tudo tarefas que podiam ser executadas tanto por uns como por outras, mas para as quais só eles eram escolhidos. Para nós era mais difícil ser bem pagas nesses trabalhos ocasionais de fim de semana. No melhor dos casos, uma cabeleireira mais concorrida podia aceitar meninas para lavar cabeças, durante a manhã, e ainda assim o valor do pagamento dependia das gorjetas.
Depois do almoço, juntavam-se as raparigas para estudar num café meio manhoso, que ficava no primeiro andar de um prédio antigo. Por não ter porta direta para a rua e nunca se saber quem se iria encontrar lá em cima, o local ganhou fama duvidosa. Na verdade, embora em certas noites lá se fizessem muitas e boas farras, a maior parte do tempo era um local sossegado, onde se podia, entre conversas banais e risinhos abafados, encontrar o silêncio suficiente para rever matérias e preparar exames. O café era mais do que o ponto de encontro e de convívio. Era uma espécie de casa comum.
Foi no final de uma dessas tardes, depois de voltarem com uma nota no bolso e disposição para pagar tostas mistas a toda a gente, que alguém deu a entender que ela estava a precisar de ter uma conversa privada comigo. Os recados enviados por portas travessas, conhecidos como “indiretas”, eram frequentes quando se queria tratar de assuntos sentimentais. Muito senhores do nosso nariz, acreditávamos ser donos de uma maturidade que ainda não tínhamos. Vivíamos em fase de transição, tentando conciliar as relações amorosas que iam surgindo, com relação geral de amizade que unia o grupo. Os amores entre amigos traziam instabilidade e eram em simultâneo uma consequência e uma ameaça à união. Pensei, por isso, que talvez ela me quisesse falar do seu interesse por algum dos rapazes, para deixar claras as suas intenções e prevenir mal-entendidos caso eu também estivesse interessada nele. A conversa insinuada, não aconteceu nesse dia nem no domingo, quando era hábito irmos todos juntos ao cinema. Pareceu-me até que evitava estar a sós comigo. Passou uma semana sem que me dissesse o que tinha a dizer.
No sábado seguinte esperei ao fundo das escadas e fui eu que pedi para falar com ela em particular, enquanto os outros subiam para o café.
[...]
Foi tempo de descoberta. Não sou em contraponto nem sigo a voz corrente, e se agora sei que não posso responder inteira ao amor que me oferecia, não foi sem conhecer que o recusei. O grupo separou-se, a amizade mantém-se.
Que posso eu dizer, desta minha ferramenta? Chamar-lhe companheira, seria bonito e era justo! E que mais? Tem a tinta lascada, está velha! Pois está, e ainda bem!
Começámos juntas. Ela condenada pelos tempos, "Tem os dias contados", e eu avisada pela experiência, "É a mão que domina a lapiseira, não deixe que a lapiseira a domine!"
Lérias!
Por mais que os tempos me assistam a criação, por muito que modelos e parâmetros me auxiliem nas soluções, é pela lapiseira que as ideias chegam ao mundo. Creio mesmo, que é um canal de duas vias, por onde tanto sai, como entra o pensamento.
Quando nos conhecemos, o menino do poço era já um homem. Mais do que um homem, pareceu-me à primeira vista, um feroz guerreiro, de quatro côvados e um palmo de altura, capaz de me esmagar com um só piscar de olhos. Nem tanto me intimidaram, a corpulência excessiva ou cabelo e barba desgrenhados, que compunham a figura de um jovem Adamastor, mas o olhar, ora esquivo, ora intenso, sim, causou efeito. Receava, sobretudo, que me entendesse como um desafio. Seja o que for - pensei - teremos que nos entender!
Não tardou a revelar, como o divertia apresentar esse cartão de visita enganoso, prontamente desmentido com modos brandos e palavras moderadas.
Deu um murro na prancha, "Deixa-os falar! Manda-os f@der!", olhou-me nos olhos e ofereceu-me a sua lapiseira. Recebeu-me bem.
A lapiseira está velha. Eu e o menino do poço também.
É bom que assim seja!
Mal nos conhecíamos e já ela se ria do meu espanto.
Gargalhada sumarenta, que nada faz para se conter ao procurar sentir-me o gosto na provocação:
"Que sabes tu destes montes nesse tempo? Se a terra não as dava era luxo, sim senhora!"
Eu, nem sempre doce, não me deixo amargar pelo ouro da discórdia. Aceito o desafio nos frutos raros e reconheço o acerto nas escolhas.
É por isso que agora, nos podemos reunir no desfastio, gozando o sabor do mais honroso prémio, em dia de corridas, da mais carinhosa prenda, em noite de Natal:
A Laranja!
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