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Não sei se foi a queda que lhe afetou as ideias ou se teria sido o susto que lhe avariou a memória, mas agora, torna e vira, quer que ligue para a oficina, porque tem de os avisar que não vai trabalhar. Já passou tanto tempo! Tanta volta já deu o mundo, e para ele é como se fosse ontem. Também a mim, não me esquece esse dia.
Parece que ainda o estou a ver, caído no cimento, todo desengonçado como um boneco, com os olhos muito abertos, o peito a arfar feito um fole, tão varado pela dor que mal conseguia gemer. Aquilo era um pesadelo em que me sentia ao mesmo tempo dentro e fora, sem ver jeito de acordar. Só ouvia a chuva a bater forte no zinco do alpendre e a minha mãe a gritar como quando a vieram chamar para que corresse à praia, por se ter virado o barco. O que ela gritava, senhores! Os meus gritos eu não ouvia, talvez por serem iguais aos dela e gritarmos a par. Estávamos de tal modo tolhidas pelo medo daquela fatalidade ser sem remédio, que nem o conseguimos arrastar para debaixo do coberto, para se abrigar da chuva. Gritar não resolve nada, ficar queda também não, mas ele há males que vêm por bem. Mais tarde, o doutor até me disse que fizemos o que é certo: quem não sabe, não mexe. Para mais, foi aquele berreiro que alertou a vizinhança. Vieram todos acudir, até o meu tio que já não nos falava desde as partilhas, mas acabou por ser o Ti Xarroco, que é parentela muito afastada do meu falecido pai e também é bombeiro, quem ligou para chamar a ambulância. Ainda da parte da tarde tinha eu atravessado para o outro lado, mais a filha dele, a ver se comprávamos umas sandálias para a festa. Ai, essas sandálias! Por causa delas, estivemos quase a perder a lancha para voltar. Só queria que as vissem! De salto alto com uma tirinha no artelho, a prender com fivela dourada, eram lindas como os amores! Eu, nesse tempo, tinha boas pernas para as usar com saia curta, haviam de fazer um vistão na festa! À noite eu e o meu homem iamos ao baile dançar até cair. Cair, salvo seja que, por infelicidade, caiu mesmo e não vamos tornar a dançar. Escusado será dizer que nesse ano não fomos à festa e nem sei porque me estão a vir à memória as sandálias, quando nessa altura passamos por uma aflição tão grande, mas mesmo tão grande que nem sei explicar… Tudo passa! Já lá vai!
E é assim, volta e meia ele quer ligar para a oficina. Tenho tudo combinado com a minha irmã, não quero que pensem que o homem perdeu o juízo. Ligo para ela, passo-lhe o telefone como se estivesse a falar para o trabalho, ele conta o que se passou e ao fim diz que foi um mau jeito, não pode ir trabalhar. Um mau jeito! Então não foi! Da cama para a cadeira, da cadeira para a cama, é esta a nossa vida, por conta de um acidente sem jeito nenhum.
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