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Passaram dez anos, há dez anos que não falamos.
A espaços, cada vez mais longos, sem aviso prévio nem causa aparente, – ainda que, por esta vez, possa aceitar como mote o fascínio dos números redondos – torna a ideia de estar ao meu alcance pôr fim ao silêncio. Esta memória rebelde há muito devia ter sido banida da lista de coisas pensáveis, no entanto refugia-se à socapa, nalguma prega remota do cérebro e, quando menos se espera, reaparece disfarçada da mais absoluta evidência.
A certeza de que o facto de não falarmos depende apenas da vontade, ou da oportunidade para o fazer, é de tal forma intensa que, numa urgência patética de reencontro, procuro nos bolsos, a chave do carro, sabendo de antemão que a tenho guardada na mala. Antes que a encontre, consulto o relógio para avaliar se o avançado da hora permite encontros imprevistos e ao constatar ser pleno dia, acabo por considerar a possibilidade de aguardar pela saída do trabalho. Para abreviar a espera, pego no telefone e pesquiso o contacto que há quase uma década foi eliminado com o objetivo de evitar a cada chamada ouvir que não está disponível, ou, pior ainda, descobrir que o número acabou por ser atribuído a uma voz que me é estranha. Somam-se os sinais de absurdo pensar. Enquanto for possível, vou ignorá-los para prolongar a ilusão de segurança que resulta das coisas garantidas: Falamos quando nos apetecer, se não for agora, é depois.
Em fundo já se faz ouvir o bulício da razão arrastando as peças para restabelecer a ordem. Até ao limite fujo, por pensamentos paralelos, ao inevitável reconstruir da realidade.
É irresistível tocar as coisas pensadas.
O prazer de encontrar números e riscos depois de ganharem forma, não se pode limitar à visão. Escusado será avisar que “tem dentes”, quando as ideias se tornam matéria palpável.
No dedo médio, ficou a picada intermitente de uma ínfima partícula de metal. Se permanecer sob a pele, ou o corpo a tolera, e com o tempo forma um pequeno calo, ou rejeita-a após uma inflamação mais ou menos grave. Uma terceira via, mais imediata, é fazê-la sair pelo mesmo caminho por onde entrou, nem que para isso seja necessário rasgar a pele.
Por medo da dor se magoa com dor maior.
Do tempo destinado às lágrimas e ao consolo de doces recordações, retenho o esforço para impedir que no futuro a memória me surpreendesse. Cada passo do último caminho foi revisitado exaustivamente nos seus mais tenebrosos pormenores. O que não se esquece, não nos poderá assaltar à traição.
Soberba, digna de misericórdia.
Dos meus dedos delicados de mulher, esperam a habilidade de retirar limalhas cravadas nos olhos. Esperam em vão, porque:
1º É obrigatório o uso de óculos de
proteção. Não arranjem confusões com os seguros!
2⁰ Pouco me importa que o enfermeiro do posto médico seja um carniceiro; Cada um no seu mister!
3⁰ O Sr. V… tem um jeito tremendo para retirar limalhas dos olhos, com uma cerda de vassoura e resolve o caso melhor que eu.
Usem os óculos, inventem o que quiserem na participação aos seguros, entendam-se com o enfermeiro e aguentem-se à bronca. Depois, agradeçam ao Sr. V…, a perícia dos seus dedos delicados… de homem.
Não falamos, porquê?
Em iguais circunstâncias, muito embora se diga que nunca são exatamente as mesmas, mantém-se assíduas conversas, juntando outra voz ao diálogo interno. Poderíamos, nós também trocar, nem que fosse, uma só palavra?
Reconheço a fórmula. Pena que tenha caído por terra o “só”, porque mais só, não posso falar, e já me vão faltando as forças para continuar a não ser digna. Subsiste o mistério da palavra: Qual?
Passaram dez anos…
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