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Distraio-me com fantasias que invento a respeito de desconhecidos…
Chegaram cedo, para evitar a confusão. Por sorte ou por castigo, Armindo Augusto está sentado desde as onze da manhã e começa já a sentir o traseiro dormente. Atribuíram-lhe a missão de guardar as mesas e aproveitando o ensejo, ficou também de vigia ao sono do neto mais novo. O miúdo terá cerca de um ano de idade, talvez nem isso, e dorme reclinado no carrinho, cabeça ao lado e fio de baba a pingar da boca entreaberta, sem dar trabalho nenhum. Tem os sonos trocados; durante o dia, um paz d'alma, o demónio em forma de gente, a noite inteira.
Mesmo sabendo da encrenca das escadas rolantes, Armindo teria preferido acompanhar a mulher e as filhas, e empurrar o carrinho do garoto, driblando o crescente rebuliço de gente atarefada, ou mesmo aguardar com resignação à porta de cada loja. Sempre podia espreitar uma ou outra montra, apreciar as decorações ou esbarrar em amigo ou conhecido com quem entabular conversa. Alguém tinha que ficar a guardar as mesas, porque estas coisas são como são: se ao Domingo é difícil, em época festiva o caso ainda se torna mais complicado, e almoço de família sem mesa em que todos se possam sentar juntos, é coisa sem jeito nenhum.
Chega a meia hora, o recinto vai enchendo, aumenta o movimento e o Armindo começa a ser repetidamente interpelado para ceder cadeiras. Ao desconforto físico, junta-se uma certa inquietação. Assim que chegou, escolheu o local que lhe pareceu mais recatado, aproximou duas mesas e dispôs as cadeias conforme as contas que mentalmente ia fazendo: um lugar para a Adelaide, dois para as filhas, que andam às compras com a mãe, mais dois para os respectivos maridos, outro para a filha do companheiro da mais nova e ainda mais duas cadeiras, para a neta, que há-de vir mais tarde, com o namorado. Rematou a soma com o garoto, para quem foi buscar uma cadeirinha de refeição, que acomodou numa das cabeceiras, e com o seu próprio lugar, como é habitual, no topo oposto da mesa.
Recusar cadeiras vazias, a quem rodopia como uma barata tonta em busca de acento, é tarefa ingrata para Armindo que não é homem de açambarcar. Chegou primeiro para se precaver, tem agora que zelar pelos seus interesses.
Entretanto, aumenta o caudal de gente que aflui à restauração e as suas mesas ainda desocupadas, tornam-se numa espécie de ilha cobiçada num mar revolto, à beira da ebulição. Formam-se filas irregulares, entrecortadas por um vaivém intenso de tabuleiros em equilíbrio instável, procurando poiso. Armindo mantém a postura impassível, mas no seu íntimo, todo aquele bulício começa a surtir efeito. Para mais, o neto pode acordar a qualquer momento e desatar a chorar porque tem fome.
Está prestes a ligar à mulher, quando os genros aparecem, com a miúda pela mão. Vêm de um encontro com o Pai Natal, no Piso 0, e são eles que se encarregam de fazer a chamada, Pouco depois, chega a neta mais velha, arrastando o namorado, que ainda se sente pouco à vontade nestes encontros familiares.
A mesa vai ficando composta, e por volta das duas da tarde, Armindo vê Adelaide ladeada pelas duas filhas, surgir do meio da multidão efervescente. Sorri à mulher, orgulhoso por ter sido digno guardião de mesas e cadeiras. Levanta-se, como um verdadeiro cavalheiro, para puxar o assento à esposa.
É então que se dá conta – esqueceu-se da cadeira para os embrulhos e sacos de compras.
… não estou certa de que seja correto escrever sobre elas. As minhas desculpas, a esta família.
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