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...acontecem a muito boa gente.
O Marques é um dos tipos mais pacíficos e educados desta selva. Gosto dele. Foi dos primeiros a topar que se não mostro os dentes é para evitar que me comam viva. Entendemo-nos.
Claro que educado não significa menino do coro, no que diz respeito à linguagem. Por estes lados o palavrão é uma espécie de conduto que se entremeia a cada duas palavras, para empanturrar a boca. O mais das vezes, de tão mastigado, acaba por não saber a nada, já noutras situações entorna-se o caldo… Não percebo muito bem as regras dessa gramática, por isso não a posso explicar. Sei é que pacífico quer apenas dizer, rastilho um bocadinho mais comprido quando se trata de fazer estourar a bomba.
Bem, toda esta conversa para quê? Para dizer que na sexta-feira o Marques se apresenta pela manhã com o sobrolho deitado a baixo. Ora isto é caso para me fazer adernar o barco. Vira-se tudo para o mesmo lado, a querer saber o que foi, e entretanto ninguém se lembra de remar. Tive que começar o dia a falar grosso, o que é sempre lamentável por me provocar uma certa gastura e deixar o resto do pessoal extremamente aziado. Não gosto.
A sexta feira é também o dia do cozido à portuguesa na Lurdinhas e tanto quanto sei é de lá que vem um grupo bem comido e bem regado depois do almoço. Desta vez o Marques não se juntou ao resto da malta e depois de comer foi-se sentar no muro a apanhar sol. É claro que não é da minha conta, saber sobre as alhadas em que cada um se mete depois de sair daqui, mas a verdade é que vi o homem tão murcho e desanimado que não pude evitar juntar-me a ele para o tentar arrebitar. Nem sempre somos bichos.
Falámos disto e daquilo e mais das desgraças que consomem o mundo, até que a propósito de um cigarro a conversa foi parar ao caso do dia.
Tinha sido precisamente por conta de um cigarro que se tinha metido em sarilhos, disse-me ele, e acrescentou que não gosta de cerveja choca porque só se lhe apaga a fervura se for tirada à pressão e na hora certa. Dito desta maneira, o que é que se pode concluir? Um caso da noite, passado num bar! Mas não, a embrulhada aconteceu no estacionamento, quando ao fim do dia de trabalho, o Marques encontrou uma criatura instalada ao volante do seu carro, a encher-lhe o veículo de fumo. Ficou barado, capaz de largar fogo pelas bentas: A Fumar! O Filho da Pu.., O C…ão de M..da, a Fumar no meu Carro Novo! A bem da verdade, embora não seja um argumento de valor, o carro só é novo nas mãos dele. Todos sabem e comentam a estima que lhe tem, ao ponto de se privar do prazer de fumar um cigarrinho enquanto conduz, para conservar impecável o "carro novo".
Era, de facto, um abuso, ainda assim, pareceu-me que seria mais inquietante encontrar um estranho dentro do automóvel… Cada um sabe de si e o Marques deve estar habituado a este tipo de brincadeiras entre colegas de trabalho.
Entretanto, lá me foi contando que o tipo do cigarro, meio distraído com o telemóvel, nem se dava ao trabalho de responder aos mimos que lhe dirigia. Viu-se obrigado a abrir a porta, decidido a arrancar o gajo dali pra fora nem que fosse a pontapé: Eu já te F…o, Corno do Ca…lho! E foi aí que a coisa aconteceu…
Tenho para mim que nisto de desabafar, o melhor é ouvir calada. Depois de se aliviarem as mágoas, ficam os fígados desopilados, e quando os ares desanuviam, até se chega a dar umas boas gargalhadas. Não foi o caso. Depois da confissão o Marques ficou mais macambúzio, como quem está agoniado por ainda ter alguma coisa entalada na garganta. Há que dar tempo ao homem para se recompor, pensei eu, mas não tive que esperar muito. Pelos vistos, o defumador de carros, depois do estrago feito, meteu-se dentro da viatura e foi à sua vida sem deixar rasto. Como é evidente, desta vez o desfecho não ia dar direito a gargalhadas. Para lhe servir de consolo, abri uma exceção e contei-lhe a desgraceira por que passei quando me levaram o automóvel da frente da porta de casa. É duro, mas uma pessoa tem que se aguentar à bronca e andar para diante. Não resultou. O Marques continuou de rastos e nisto tinha-se acabado a hora do almoço.
Por efeito da proximidade do fim de semana ou graças ao tempero da Lurdinhas, as tardes de sexta feira costumam correr de feição e num instante está finda a jornada. À saída, o Marques desapareceu como um foguete. O resto do pessoal ficou na risota, comentando o caso do gajo que só depois de levar um murro na cara é que lembra que carros novos há muitos e que o dele estava estacionado dois lugares atrás!
Acreditem, enganos acontecem a muito boa gente…
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