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Nasceu em dia imprevisto, provocando algum alvoroço, mas sem trazer aflição de maior para que a mãe o desse à luz e sem nada que fizesse duvidar que a luz o iria aceitar com a mesma boa vontade com que a família o esperava. Perfeitinho, como dizia a avó, uma riqueza, acrescentava a vizinha que tinha acorrido aos gritos do primeiro folgo.
Passado o reboliço da vinda antecipada, depois de limpo e asseado, enrolado nas mantas, foi entregue à mãe que sem demora tratou de verificar com olhos de ver, o que no seu íntimo há muito conhecia e desejava.
Entretanto foram anunciar ao pai que por sua conta, tinha mundo mais uma alma.
Chegou esbaforido pela pressa de lhe dar as boas vindas, contudo assim que o viu, estacou petrificado e mudo, como se de súbito se deparasse com um prodígio. Foi a mulher que o tirou do estado de suspensão em que ficou, oscilando entre a reverência e a dúvida de ser parte daquele milagre – Nasceu-nos um menino! – disse baixinho, acordando-o do encantamento, ao mesmo tempo que lhe estendia a criança, para que a tomasse nos braços.
Segurou-o a medo, porém logo que o apertou ao peito e lhe sentiu o calor, tranquilizou-se – É o nosso filho! – Sem que as quisesse conter, soltou dos olhos duas lágrimas quentes, grossas e livres. Regressou ao silêncio, mas desta vez para usar a linguagem primordial do entendimento sem palavras, onde é fácil dizer sem falar.
– Sabes o que nos trouxe? – De novo a voz suave da mulher o tirava da quietude – Como posso eu saber!? – Ela demorou a resposta num sorriso brando, até o sentir desperto pela curiosidade – Diz-me! – Só então lhe apontou a pequena mão direita da criança. Em vão ele a tentou abrir, e mais se fechava ao toque, como se fosse uma semente que ainda não estivesse disposta a desvendar a vida. Devolveu a criança aos braços da mulher que sem pressa, tomou delicadamente a pequena mão e a levou aos lábios. Ao toque misterioso do beijo da mãe, desfez-se toda a resistência, e cinco dedinhos frágeis, brotaram em simultâneo como rebentos, revelando o que se guardava no interior. Um gancho ínfimo, curvo como um anzol rematado por pedra de sal. Era essa a prenda que trazia consigo.
Intrigado pela infinidade de reflexos que a luz produzia no diminuto cristal, o homem não resistiu à tentação de o observar mais de perto. Assim que o tocou sentiu que se afundava profundamente sob a pele dos dedos, sem que no entanto lhe provocasse qualquer tipo de dor. Só uma pequena gota de sangue aflorou à superfície. Instintivamente levou-a à boca – É doce…– observou ele – …como as lágrimas são de sal! – completou a mulher.
Nesse instante a cara da criança tornou-se vermelha e enrugada, a testa franzida e os lábios comprimidos pareciam anunciar um iminente choro a plenos pulmões, porém da sua pequena boca apenas se ouviu um gemer triste e contido, como se tivesse nascido conhecendo a tristeza e por algum motivo a quisesse conter. Aquele lamento prolongou-se num queixume incessante que ecoou pela casa e em seguida alastrou por toda a rua.
Durante uma semana foi impossível dormir. Ao sétimo dia, a vizinhança esgotada pela insónia, reuniu-se para pedir encarecidamente aos pais, que dessem nome à criança. Todos se juntaram para o chamar por quantos nomes conheciam, até que aceitou ser Roque e o seu murmúrio cessou.
Era domingo, o dia do começo.
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