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Deixa que chore!
Olha que se estraga!
E eu gelada, tremia.
Vinha a avó, muda e queda,
a acenar com a cabeça,
que sim,
que sabia
não ser imaginação
o frio que eu sentia,
se não te tivesse nos braços.
Muda e queda, dizia
Dá-lhe mimo!
Dá-lhe colo!
Dá-lhe muito, muito, muito!
Agora que tenho nove anos de idade, vou servir para casa de uns senhores que quiseram ficar comigo. A minha mãe disse-lhes que já sei fazer muita coisa. Sei pôr a comida ao lume e fazer as camas e lavar a roupa e deixar tudo asseado. Também posso tomar conta dos meninos, como faço com os meus irmãos. Sou eu que a ajudo a governar a casa, desde que o meu pai teve o acidente. Esteve muito tempo entrevado e o patrão teve que pôr outro no lugar dele. Depois, como ficou tolhido de um braço, o patrão já não o quis de volta. Foi ele que falou à minha mãe destes senhores, para onde vou. Acho que ainda são aparentados. Têm uma casa muito bem posta, com coisas boas e finas, e querem ter tudo sempre em ordem. A criada já está a ficar velha e a senhora é doente dos nervos, faz-lhes falta uma rapariga para ajudar. Antes do acidente, vivíamos remediados com o que o meu pai ganhava. Andei na escola até à segunda classe. Aprendi as letras, custa-me a ler, mas as contas faço-as todas de cabeça. A mestra até disse que eu havia de dar para os estudos. Por isso se a senhora me mandar fazer recados, ou ir ao mercado, não me deixo enganar nos trocos. O meu pai recomendou-me, que havia de ser sempre muita séria quando tivesse que apresentar contas aos senhores e que não devia querer nada que não fosse meu, mas que podia aceitar o que me dessem. Disse para só falar quando me perguntassem alguma coisa e para dizer sempre "desculpe", "se faz favor" e "muito obrigada".
Quem me ensinou a morte impura para se dizer? Quero falar do Telmo. Vou falar do Telmo. O Telmo está morto.
Conheci-o num desses altares de memória, adornados de flores e cera, que presumem vencer o esquecimento. Era recente a sua eternidade, recém acrescentada a minha saudade, também.
Nunca o conheci de outra forma. Tornou-se referência minha, num dia de desnorte. Perdi-me, sim! Perdi-me literalmente, num labirinto de ramos viçosos e flores murchas, retratos, nomes, datas, estátuas e estatuetas, cruzes e crucifixos, lamparinas, pedras lavadas, pedras sujas e gastas, montes de terra revolta, pequenos ressaltos de terra em que tropeço.
Desorientada, sem haver a quem chamar em auxílio, por inexistir quem venha por mim guiar o caminho, deixei-me cair de joelhos.
Não é bom chorar pela manhã, ao acordar. E eu não choro! Eu atiro-me para o chão e semeio a raiva como uma criança contrariada nos seus caprichos.
O Telmo sorria para mim, um perpétuo sorriso forçado de foto tipo passe. Gravados em bloco de granito cinzento, letras e números riscados na pedra, sobre o peito.
TELMO P.
xx-xx-1992
xx-xx-2014
ETERNA SAUDADE
Miúda mimada, de que é feita a tua dor?
Do mesmo pó e lama com que me choram?
Ergui-me.
Como te atreves?
E era logo ali. A dois passos.
O que busco não é nada, mas afeiçoei-me à lomba de terra, e no caminho o Telmo é referência.
… adivinha onde estou? Estou sem vontade de supor paradeiro incerto, em terra capital… Bem sei onde estás! … para mais, convém-me transparecer amuo por não poder ir a par (amuaaaar faz bem, como na canção)… Diz, se quiseres! Só depois me apercebo, que rigor das coordenadas é para consolo do meu despeito (mas não demores)… Na Igreja! Sabe como me desamarrar o burro, ainda assim muar que se preze, empanca … Então, procura Helsínquia, se existir! (pura pirraça) O mesmo que pedir desforra por ter ficado em terra. A menos que a peste lhe tenha fechado as portas, ou as modas lhe tenham mudado o nome, Helsínquia tem resistido sempre. Ouço os passos em busca… No gaveto do primeiro quarteirão, lado esquerdo!… a ofegar avenida acima, ainda me fala de Itália, para distrair com a cassata, mas estou virada aos lanches. Na esplanda senhoras de cabelo armado, blusas de seda e grandes óculos de sol, a bebericar limonada, enquanto abanicam discretamente os calores da época e da meia idade, fazem esvoaçar vaporosa conversa perfumada (onde é que eu já li isto?). Querida avó, tão cordial e elegante nas suas tardes de verão… por fim Está no sítio de sempre, mais moderna, para que saibas! E sei também que do outro lado, PA tem outro figurino, já não é Princesa. Resisto ao abuso de pedir confirmação, até porque, hora e mesa estão marcadas… Divirtam-se! … e as minhas pernitas magras, cansadas de balançar ao ritmo da prosa miúda de gente grande, num impulso me fazem saltar da cadeira, com rumo certo à Epifânio. Não sei ler placas de toponímia, nem coisa nenhuma. Ainda não. Hei-de orientar a memória como os pombos, pelas referências. A calçada diária, a igreja dominical, a curva, o declive, o trânsito muito e as pessoas muito mais, vão diminuindo como num funil até às escadas (não desço já) procuro a janela, quadrado que sempre me pareceu pequeno para iluminar a sala. Lá estou eu, final da tarde, à espera que me leve… Aonde?...ali adiante, a casa do tio… Mas qual tio?... Marcelo, diz meu pai. Querido avô, militarmente recto, paternalmente escandalizado… O teu pai fala de mais! (fala o que pensa e nada mais, pensei)…docemente enternecido a recusar parentesco e visita (ponto final). Mergulho nas estacas, antes de entrar. Ainda aí estás?... Adiante os Estados Unidos, na outra margem, Guilhermina das manhãs de sexta-feira: Mise en plis, unhas, buço e sobrancelhas, café, rissóis e croquetes… Estou cansada, volto outro dia…
Borbulha como poção mágica, fazendo tremer o caldeirão. Defendo-me a custo: na mão esquerda, o testo como escudo, à direita a espada de pau…
Eram danados para engendrar artimanhas. Nos primeiros dias, era juntar o risco de ser apanhado em flagrante com a falta de consistência; nem pensar! Lá pelo meio da semana, já se podia inclinar a malga e deixar que deslizasse inteira. Depois, era só pegar na navalhinha de capar grilos, e cortar-lhe a curva por altura do pólo sul. Logo ali e sem demora, a dividiam entre si, para que se derretesse na boca, enquanto remediavam o desfalque. Voltava tudo ao seu lugar, sem que ninguém desse por nada. Ao outro dia, se tornava a fazer sol, lá estava a tentação debruçada no peitoril da janela providencialmente aberta, a desafiar a gula. Mais uma volta e mais um paralelo era subtraído à socapa. Por essa altura, o hemisfério ficava reduzido a pouco mais que um disco delgado apoiado por uma rudimentar, mas eficaz, estacaria de gravetos. Aconchegada no seu lençol de seda perfumado a aguardente, muito composta, como se intocada por mãos tão gulosas como matreiras, a marmelada continuava a secar ao sol.
…Valha-me Deus, que horas são estas?!
Tanto quanto eu,
raparigas,
e eu só rapariga ainda,
não,
tinham já conquistado,
pela força do trabalho,
o nome de mulher,
As Mulheres da Seca!
Tão iguais e tão diferentes
fomos e somos,
mulheres!
Vamos dizer que bolos, são só lambarices, que abrem buracos nos dentes e fazem bichas nas tripas. Vamos fingir que isso dos bolos é tudo a mesma coisa e que de onde vêm ou quem os faz, pouco importa…
Contorna o balcão, para acompanhar até porta, e mais uma vez, felicidades e cumprimentos à família. Serão entregues. É uma simpatia, este senhor, todo ele cuidados e atenções para satisfazer a freguesia da sua, bem conceituada pastelaria.
Vai a caixa mais o bolo, pelo caminho, equilibrada com mil cuidados e ovos frescos misturados no açúcar branco, na alva farinha fina, manteiga derretida. Tudo na conta, peso e medida, que a perícia do pasteleiro, sabe transformar numa delícia.
Era o primeiro, sem o ser. Da pastelaria, já se provou a qualidade e lá se satisfez a gulodice, muita vez. Para este fim era o primeiro e terá um gosto estranho a coisa estranha, vai enrolar na boca, vai arranhar na garganta, já o pressinto!
Ao chegar a casa, sai o prato do armário, o de sempre, de porcelana com flores pintadas e estende-se a toalha do costume, bordada com flores iguais, e tudo o mais, que se junta em cima da mesa, à volta do bolo, que é o centro.
Tudo é tão igual e tão diferente!
Todos são os mesmos, mas não todos.
Elogios às rosas de açúcar e pérolas prateadas, às amêndoas finamente lascadas e os parabéns ao nome em arabescos de chocolate. Uma beleza!
Já nem os bolos são assim… Nem nunca o bolo assim tinha sido, porque era o primeiro e terá um gosto estranho a coisa estranha, e está na hora de provar que bolos são só lambarices…
Mas que tem o bolo?
Tem tudo, é muito doce, muito bonito! É altura de fingir que isso dos bolos é tudo a mesma coisa… sabe muito bem… só não tem o calor do forno, nem gosto das mãos da minha mãe.
Era o primeiro, e mal o provei, já o sabia, não passa na garganta!
Estou a olhar para os dedos dos pés. São dedos de menina. Pequenos e redondinhos, brancos, suavemente rosados ao redor das unhas, como gotas de água pura, em pálidos tons de rosa. Pousados ao fundo da cama, descansam de tanto correr pelo tecto. É um tecto sem idade. Grande e rectangular, branco, ligeiramente cinzento junto aos cantos, como espelho de água parada, em deslavados tons de cinza.
Estou a olhar para os dedos dos pés com os olhos de mulher que correu mundo no tecto do quarto, enquanto menina. Pergunto-lhes, quanto os marcou o isolamento, quanto lhes doeu a caminhada da cura?
Destes dedos dos pés de menina, eu mulher e o branco tecto, sabemos agora o que então sabíamos:
Querem tocar o chão das outras crianças e correr no mundo delas.
Não conheço nada que se aproxime mais da sensação de voar, que saltar de um baloiço a alta velocidade.
Sorrateira, saio pé ante pé. Há que aproveitar as ocasiões, que os baloiços são só dois e a procura é muita.
Ora vamos lá levantar voo. Motor a trabalhar, que é como quem diz, coração a bater forte e um, dois, três… pelo imenso céu fora, feliz e livre, sem asas nem avião.
Haverá coisa melhor?
Não sei nem conheço.
As aterragens é que são mais complicadas, mas nada que não se resolva. Basta levantar a cabeça e… uma impressão na nuca, umas estrelinhas a piscar, apaga-se a luz.
Torna-se a fazer dia, lá para o lado do hospital, ao som de um muito intrigado:
"Minha senhora, tem a certeza que foi um baloiço? São 7h da manhã e a menina está descalça e em pijama!"
Esta memória foi redigida pela Provecta Rainha da Escrita Esquisita, em resposta ao desafio do Valente Cavaleiro Dom Marco del Merlo
Maio, mês de se arrastarem os móveis para encerar o soalho
Maio, mês de se acenderem os lustres para iluminar a festa
Maio sem medo, mas com respeito e Santa Bárbara nos acuda,
que este é o mês dos
Grandes Bailes Celestes!
Perguntaram-me se sabia o que eram umas Lois, e eu ia dizer que eram...
...mas depois, memória puxa memória, e esqueci-me de responder...
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