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Sabem aquelas pessoas que se agarram a um pormenor que lhes chama a atenção e depois ficam um ror de tempo especadas a olhar e a pensar sabe-se lá em quê? E já ouviram falar daquelas que quando tudo lhes interessa lhes dá a filoxera e acabam por se ir embora com a sensação de não ter visto coisa nenhuma?
Esses, talvez não sejam das vossas relações – é tudo gente esquisita, que volta vezes sem conta ao mesmo sítio, como se não tivesse mais nada com que se entreter – mas concerteza conhecem os que se queixam de não saber o que fazer nem onde ir, porque o dinheiro não dá para tudo. Seja lá pelo que for, todos gostam de uma boa borla, é aproveitar! Aos Domingos e feriados
Este é o Domingos, do Soares dos Reis
Engolir de uma só vez!
Agora diga comigo:
Para maus sonhos…
…insónias!
O que não tem remédio…
…Cura!?
Jejum rigoroso…
…para fome louca
O que arde…
…remediado está!
Vá lá, sorria!
Acordava tarde com o aroma de manteiga derretida. Eram os ovos mexidos do pequeno almoço a que não estava habituada, servidos num prato de porcelana antiga, que a avó pousava em cima da mesinha redonda para onde convergia o terno de sofás. O avô trazia uma das banquetas estofadas para que me sentasse e depois ia acomodar-se junto à janela, para me fazer companhia ao mesmo tempo que passava os olhos pelo jornal. Um perfeito absurdo, considerava o pai quando lhe contava aquela extravagância. Deixar uma criança tomar o pequeno almoço na sala de visitas, podia torná-la cheia de tiques e manias, dizia ele. Mas a avó estava decidida a fazer o que estivesse ao seu alcance, para eu me sentir em casa dela como uma espécie de princesa. Evitava dizê-lo para não criar conflitos, e quando era confrontada, argumentava com o facto de a pequena dimensão da mesa ser a mais adequada ao meu tamanho. Tudo aquilo me parecia muito divertido. Não tinha mais aspirações a ser princesa, do que outras fantasias no reino faz-de-conta onde podia ser o que quisesse. Gostava de tomar o pequeno almoço naquele compartimento poupado ao uso quotidiano, não tanto por me ser dado o privilégio reservado às visitas, mas sim porque me fascinavam as formas curvilíneas da mobília. Os pés dos sofás eram um arco curto e gordo como coxas de frango, mas a mesa assentava em pernas ondulantes que imaginava pertencerem a graciosas bailarinas. Para mim, aquilo era o cúmulo da elegância. Foi por isso que fiquei com a mesa de centro da avó, onde agora pouso a querida laranjeira que me traz tantas dúvidas. Sei que se vinga com minúsculos frutos, tão perfeitos quanto azedos.
Não sei se é mais correto aprisionar laranjeiras em vasos do que pássaros em gaiolas.
Quando encontrei esta mesa, quase redonda, foi nas pernas que primeiro reparei. Que pernas tão delicadas para suportarem um tampo tão pesado!
A obra é de Vasco Araújo. Penso que o texto da Mariazinha a limpar talheres de prata é de Pepetela. Por ter cérebro de ovos mexidos, não tenho certeza. Se estiver enganada, peço desculpa.
São muito desgastantes as disputas pela conquista da última palavra.
–Olá, bom dia!
– [...] dia.
– Vamos começar?
– Não me apetece! É só para avisar que hoje detesto pessoas!
– Estou avisada! Não se preocupe, se preferir posso ser uma besta.
– Não era para ofender, escusa de ficar toda ouriçada!
– Então, vamos ao que interessa! Percebeu, ou quer que lhe faça um desenho!?
– Não é para isso que lhe pagam!?
– Mau, mau, mau!
– Mé, mé, mé!
– Bla-bla-bla!
– Nhe-nhe-nhe!
[...]
Desgastantes e inúteis!
É indelicado importunar as pessoas com certos assuntos.
Não me apetece escrever, irei até onde for capaz.
Primeiro foi a do Moisés. Tinha ele não mais de sete ou oito anos, quando a mãe saiu de casa para ir pagar uma promessa. Eu, naquela idade, conservava ainda a inocência necessária e suficiente para acreditar que as pessoas com propósitos piedosos, como era o caso de quem ia até Fátima a pé, ficavam a salvo de acidentes, guardadas por especial proteção superior. Estava errada.
Nunca tinha sido amiga do Moisés, antes conhecido e apontado como provocador de brigas e desacatos. Tinha medo dele. Ainda assim, quis que me levassem pela mão até a porta da capela para dar um abraço ao rapaz que estava lá dentro a despedir-se da mãe. Julguei sentir em mim o mesmo desamparo.
Não me tornei amiga do Moisés, depois merecedor de condescendência geral para qualquer falha, a coberto da perda. O meu medo transformou-se.
Diferente e sem nome, esse sentimento novo começou a maquinar na cabeça uma estratégia ainda mais ingénua: Se conseguisse partilhar da dor dos outros, poderia ser poupada ao meu próprio sofrimento. Continuei errada.
As circunstâncias acabaram por abrandar os modos brutos do Moisés. Com o tempo, depois da revolta inicial, deixou-se de rixas e lutas, para se tornar num adulto prematuro. Eu só tinha crescido um pouco e continuei criança aos olhos daquele miúdo a quem todos passaram a considerar como um homenzinho.
Do medo nunca nasceu amizade.
Só mais umas linhas
A seguir foi a da Ana Maria. Eu mal conhecia a mãe dela, porque raramente saía à rua. Diziam que sofria da cabeça, diziam que tinha de dormir com a porta trancada, diziam que se devia ter guardado a chave. Diziam, diziam, diziam, e eu não entendia nada do que diziam entre gritos e choro, quando de manhã encontraram o corpo no canal, enterrado no lodo da maré vaza. Continuei por muito tempo sem perceber, não sei mesmo se alguma vez o irei conseguir.
Por mais que perguntasse, ninguém estava disposto a contar-me as coisas como elas são. Ia escutando meias palavras destinadas a poupar as crianças, tirava as conclusões possíveis: Sofrer da cabeça, não era ter enxaquecas como a D. Elvira, que se fechava às escuras, em silêncio durante três dias seguidos e depois ficava bem e cheia de fome por quase não ter comido durante tanto tempo. Não era a mesma coisa, exceto no escuro e no silêncio.
Estou a sentir-me enjoada, mas vá lá…
Depois, foi a da Rosarinho. Ao que a matou, ninguém gostava de chamar pelo nome. Tinha uma coisinha má, não na mama, mas no peito. A mãe da Rosarinho, bem se podia ter salvo, pensava eu.
O marido era médico, conhecia muitos outros médicos no país e no estrangeiro, mas ela tinha pouco tempo e não quis…
P’ro c@ralhø, quem inventou que escrita ajuda!
Nem mais uma palavra!
ACABOU!
Quase uma semana, e mantém-se esta sensação de pescoço varado por seta que me arranha a garganta e enrouquece a voz.
Se falo, é um dizer grave e grosso, como o falar áspero, que tão bem sei e uso, mas não devo, para recusar leite e mel que me oferecem.
A quem culpar, se não cresci? A quem, se não a mim?
Então, calo, em silêncio, para não ferir.
Se ainda me tremem as pernas?
Ainda!
Se os joelhos se dobram sem querer?
Também!
A quem importa o meu terror se não dei um passo em frente... se não cresci!
De todas as imagens recolhidas em nichos, que do alto das peanhas, ilustraram o meu catecismo, nenhuma outra mais do que essa, produziu em mim maior efeito.
Quase uma vida completa, toda a que tenho e a que tive desde então, e mantém-se esta sensação!
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
as pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!Luís Vaz de Camões
Era Feliz o Mortal de ontem à noite.
Ainda antes de apagar a luz me pareceram
felizes todos os passageiros da carruagem
e até mesmo a Mortal esposa…
Os pneumáticos tornam a bufar sem efeito visível e o motorista, intransigente no cumprimento dos seus deveres profissionais, rosna entre dentes que dali não sai enquanto as portas não fecharem.
Decidida a entrar neste autocarro, já com um pé no patamar, Aldina tenta contrariar a má sorte de pela segunda vez ficar em terra, abrindo caminho com o ombro. A sua figura franzina está aumentada por um apêndice volumoso. Logo hoje, dia de greve em que tem que apanhar três autocarros para voltar a casa, se lembrou a doutora das quartas-feiras de lhe deixar junto com o pagamento, um saquinho bem anafado. São coisas em desuso, oferecidas por gosto e abundância, e acolhidas com agrado. Agradece de coração o bom coração de quem dá, mas é um facto que nestas circunstâncias o saco se torna um estorvo.
Aldina pede auxílio aos que já se resignaram a esperar pela próxima viagem, para que empurrem e comprimam o aglomerado de gente que entope a entrada, de forma a que também ela e o seu saco caibam nesta carrada. Quem fica ajuda – não sem interesse de ver a fila emagrecer – e as portas gemem e chiam, tornam a tremer, giram no eixo e acabam por rodar sobre si mesmas para se fechar.
Ainda falta um degrau, mas Aldina já está dentro, vai seguir viagem, e é isso o que lhe importa
O autocarro retorna lento ao fluxo do trânsito, num pára-arranca intermitente, com o motorista a reclamar a prioridade que tem, até que alcance a faixa que lhe é destinada, para então ganhar velocidade. Amontoados ao acaso, os passageiros formam temporariamente uma espécie de mixórdia de corpos, em que ninguém sabe ao certo onde cada um começa ou acaba. Sem ter oportunidade de validar a passagem, Aldina segue adiante no corredor, arrastada pela avalanche humana que procura acomodar-se da melhor forma.
A cada paragem refaz-se a lotação, um ou outro lugar sentado troca de dono – outros ouvidos tamponados por auriculares, outros olhos a rolar nos ecrãs, outros rostos revelando os mais diversos estados de ânimo – mas sem que se altere favoravelmente o saldo entre os que saem e os que entram.
Por fim, Aldina sente os pés tocarem o chão, encontrou o seu canto não muito longe da porta da saída. Encaixou-se entre os lugares sentados frente a frente no último troço da viatura. Vai de pé e não tem onde se agarrar, nem mãos livres para o fazer. Mulher precavida, tem sempre uma mão de guarda à mala que traça entre o ombro e a anca, a outra está hoje destinada ao precioso saco. Tenta manter o equilíbrio e só a barreira de gente que lhe invade o espaço íntimo, lhe dá suporte para se manter na vertical.
Repetidos atrasos na entrada de passageiros fazem com que o condutor inicie uma competição com os semáforos para recuperar o tempo perdido. Como na maioria dos jogos, nem sempre se ganha, nem sempre se perde, o que neste caso, corresponde a consecutivas acelerações e travagens. Assim, pouco antes do término da viagem, um cruzamento traçado a régua e esquadro e um sinal amarelo, levam o autocarro a uma manobra brusca e inesperada que faz Aldina perder o equilíbrio. De súbito vê-se estendida de costas, descomposta e desorientada, sobre joelhos estranhos. O aperto que até este momento suportou com firmeza, rebenta numa só lágrima, filha única de humilhação, sem dar espaço a outras emoções, porque o autocarro chegou ao destino. Tenta recompor-se, pede desculpa, ergue o corpo. Na mão tem um par de óculos que agarrou no desespero da queda e que devolve ao legítimo proprietário. É então que dá pela falta do saco. Dá-se o direito de aguardar que passe a confusão da saída para o procurar. Talvez alguém o tenha levado, talvez seja agora só folhas soltas e livros pisados, pelo chão.
… se não por via das atribuladas núpcias,
só pelo caso raro de viajar noutro comboio,
pode dizer-se feliz.
Grosso modo, acredito na inocência dos
cordeiros.
Porque me ensinaram, acredito ser todo manso o meu rebanho.
E persisto em confiança, quando tresmalhado um ou outro se dissimula em branca casa, sem se deixar enrolar no jornal.
Por escolha, na dúvida, espero e creio.
Fica fora da caixa. Fica, para lembrar.
Só não sei se ri para mim, ou se ri da minha fé.
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