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Acordava tarde com o aroma de manteiga derretida. Eram os ovos mexidos do pequeno almoço a que não estava habituada, servidos num prato de porcelana antiga, que a avó pousava em cima da mesinha redonda para onde convergia o terno de sofás. O avô trazia uma das banquetas estofadas para que me sentasse e depois ia acomodar-se junto à janela, para me fazer companhia ao mesmo tempo que passava os olhos pelo jornal. Um perfeito absurdo, considerava o pai quando lhe contava aquela extravagância. Deixar uma criança tomar o pequeno almoço na sala de visitas, podia torná-la cheia de tiques e manias, dizia ele. Mas a avó estava decidida a fazer o que estivesse ao seu alcance, para eu me sentir em casa dela como uma espécie de princesa. Evitava dizê-lo para não criar conflitos, e quando era confrontada, argumentava com o facto de a pequena dimensão da mesa ser a mais adequada ao meu tamanho. Tudo aquilo me parecia muito divertido. Não tinha mais aspirações a ser princesa, do que outras fantasias no reino faz-de-conta onde podia ser o que quisesse. Gostava de tomar o pequeno almoço naquele compartimento poupado ao uso quotidiano, não tanto por me ser dado o privilégio reservado às visitas, mas sim porque me fascinavam as formas curvilíneas da mobília. Os pés dos sofás eram um arco curto e gordo como coxas de frango, mas a mesa assentava em pernas ondulantes que imaginava pertencerem a graciosas bailarinas. Para mim, aquilo era o cúmulo da elegância. Foi por isso que fiquei com a mesa de centro da avó, onde agora pouso a querida laranjeira que me traz tantas dúvidas. Sei que se vinga com minúsculos frutos, tão perfeitos quanto azedos.
Não sei se é mais correto aprisionar laranjeiras em vasos do que pássaros em gaiolas.
Quando encontrei esta mesa, quase redonda, foi nas pernas que primeiro reparei. Que pernas tão delicadas para suportarem um tampo tão pesado!
A obra é de Vasco Araújo. Penso que o texto da Mariazinha a limpar talheres de prata é de Pepetela. Por ter cérebro de ovos mexidos, não tenho certeza. Se estiver enganada, peço desculpa.
São muito desgastantes as disputas pela conquista da última palavra.
–Olá, bom dia!
– [...] dia.
– Vamos começar?
– Não me apetece! É só para avisar que hoje detesto pessoas!
– Estou avisada! Não se preocupe, se preferir posso ser uma besta.
– Não era para ofender, escusa de ficar toda ouriçada!
– Então, vamos ao que interessa! Percebeu, ou quer que lhe faça um desenho!?
– Não é para isso que lhe pagam!?
– Mau, mau, mau!
– Mé, mé, mé!
– Bla-bla-bla!
– Nhe-nhe-nhe!
[...]
Desgastantes e inúteis!
É indelicado importunar as pessoas com certos assuntos.
Não me apetece escrever, irei até onde for capaz.
Primeiro foi a do Moisés. Tinha ele não mais de sete ou oito anos, quando a mãe saiu de casa para ir pagar uma promessa. Eu, naquela idade, conservava ainda a inocência necessária e suficiente para acreditar que as pessoas com propósitos piedosos, como era o caso de quem ia até Fátima a pé, ficavam a salvo de acidentes, guardadas por especial proteção superior. Estava errada.
Nunca tinha sido amiga do Moisés, antes conhecido e apontado como provocador de brigas e desacatos. Tinha medo dele. Ainda assim, quis que me levassem pela mão até a porta da capela para dar um abraço ao rapaz que estava lá dentro a despedir-se da mãe. Julguei sentir em mim o mesmo desamparo.
Não me tornei amiga do Moisés, depois merecedor de condescendência geral para qualquer falha, a coberto da perda. O meu medo transformou-se.
Diferente e sem nome, esse sentimento novo começou a maquinar na cabeça uma estratégia ainda mais ingénua: Se conseguisse partilhar da dor dos outros, poderia ser poupada ao meu próprio sofrimento. Continuei errada.
As circunstâncias acabaram por abrandar os modos brutos do Moisés. Com o tempo, depois da revolta inicial, deixou-se de rixas e lutas, para se tornar num adulto prematuro. Eu só tinha crescido um pouco e continuei criança aos olhos daquele miúdo a quem todos passaram a considerar como um homenzinho.
Do medo nunca nasceu amizade.
Só mais umas linhas
A seguir foi a da Ana Maria. Eu mal conhecia a mãe dela, porque raramente saía à rua. Diziam que sofria da cabeça, diziam que tinha de dormir com a porta trancada, diziam que se devia ter guardado a chave. Diziam, diziam, diziam, e eu não entendia nada do que diziam entre gritos e choro, quando de manhã encontraram o corpo no canal, enterrado no lodo da maré vaza. Continuei por muito tempo sem perceber, não sei mesmo se alguma vez o irei conseguir.
Por mais que perguntasse, ninguém estava disposto a contar-me as coisas como elas são. Ia escutando meias palavras destinadas a poupar as crianças, tirava as conclusões possíveis: Sofrer da cabeça, não era ter enxaquecas como a D. Elvira, que se fechava às escuras, em silêncio durante três dias seguidos e depois ficava bem e cheia de fome por quase não ter comido durante tanto tempo. Não era a mesma coisa, exceto no escuro e no silêncio.
Estou a sentir-me enjoada, mas vá lá…
Depois, foi a da Rosarinho. Ao que a matou, ninguém gostava de chamar pelo nome. Tinha uma coisinha má, não na mama, mas no peito. A mãe da Rosarinho, bem se podia ter salvo, pensava eu.
O marido era médico, conhecia muitos outros médicos no país e no estrangeiro, mas ela tinha pouco tempo e não quis…
P’ro c@ralhø, quem inventou que escrita ajuda!
Nem mais uma palavra!
ACABOU!
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