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Ausência

por esquisita, em 20.06.23

 

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Não há quem possa, e eu mais sei que não, como tu sabes, quando estás. Estendes os braços para que te agarre, estendo os braços para te agarrar, e mal se desfez a onda que te atira à praia, outra te leva de novo ao mar.
Cada vez estás menos, e eu menos posso.

 

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Os Outros

por esquisita, em 12.06.23

 

Diz quem já conseguiu lá entrar, que a casa de Arisco Esquivo pode ser um recanto agasalhado em dias tortos. Muitos, sem conhecer, pensam isto e aquilo da toca do bicho do mato. Pensa ele, que de pouco lhe valia passar meio sábado, quase meia vida, a limpar, a arrumar, a pôr tudo em ordem, se não fosse para abrir a porta quando batem. Quando menos espera, chega este e "Aí, que estou a ver a minha vida a andar para trás!", aparece o outro e "Nem queiras saber o que me aconteceu…". Vêm à procura do aconchego de uma casa que está a ficar velha. Antes que perguntem se podem, antecipa-se o Arisco: "É entrar, é entrar!". Por cortesia, trocam a ordem e chamam-lhe velha casa, "Com licença", sem imaginar os trabalhos por que passou, para poder agora, estar à disposição e pronta a acolher. Lá vão encharcados, pelo corredor fora, a carimbar a carpete com lama, para tomarem conta do sofá. Estendem-se ao comprido, antes de descalçar as botas e pedem um par de orelhas. "Aqui estão, para te ouvir!" diz o Esquivo sem acrescentar palavra, por saber que a melhor maneira de escutar, é estar calado. Agarram-se às almofadas, que amarfanham e regam de baba e ranho, fungam na ponta da mantinha em que se enrolaram e diluem o café em lágrimas, antes de o entornar. Até este ponto, Arisco Esquivo não se altera com a desordem. Reconhece que nem todos os bichos são do seu mato. A outras vidas, que quase inveja, alivia partilhar o fardo, porque depois de expor mágoas, nasce-lhes uma alma nova, decidida a agendar o fim do mundo para outro dia. Para comemorar, o Esquivo vai pôr ao lume mais uma cafeteira e o ar perfuma-se de conversas com aroma café. Enquanto ferve e não ferve, por distração e sem querer (o Arisco nunca acredita que alguém lhe desarrume a casa, por vontade própria) começam a levantar a ponta do tapete, abrem e fecham as portas dos armários, remexem nas gavetas. No fundo de uma velha arca, vão desencantar um trapo dobrado e guardado com mil cuidados. Prestáveis, quase como quem faz um elogio, resolvem sacudir-lhe o pó "Para ti é fácil, não te importas com o que os outros pensam!". É a vez de Arisco Esquivo entornar o café, mas como o seu mundo é quase todo por dentro, não se vê a olho nu, nódoa nem mancha. O que os outros pensam nunca o impediu de fazer o que quiser, e no entanto, o que pensam importa. Importa muito. Despede-os com um sorriso, fecha a porta e vai passar o outro meio sábado a limpar e a arrumar.

 

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Intervalo

por esquisita, em 03.06.23

 

Fim de tarde, pôr do sol, esplanada à beira mar. Fauna e flora, folclore.

Passado um ror de cerveja, quando o chão em torno da mesa era já só cascas de tremoços e amendoins – Deixa estar, que é biodegradável – deu-lhe para intervalar brevemente a modorra, com matérias mais profundas – Agora é que isto vai mudar! O empregado vem buscar os copos vazios e dá-lhe corda, – Então, porquê? – porque não tarda acaba-se a louça atrás do balcão. Pausa estratégica, – Eu já te digo… – com a língua a estrebuchar por todos os cantos e recantos da boca, sem que se perceba se o interregno serve para preparar a oratória, ou – Os amendoins são tramados! – para fazer higiene oral. Com um gole, aclara a garganta, e de seguida acende o cigarro que o vai acompanhar na divagação – Vamos ter os patrões na palma da mão! O compincha estremunhado, dá um salto que faz estremecer a mesa – Omessa! – e o barista revira os olhos, enquanto enxogalha os copos, no alguidar – Vai começar! – E foi de rajada:
– Já ninguém consegue criar filhos, somos cada vez menos a trabalhar. Os velhos estão cada vez mais velhos, e não podem. Dos novos, quase tudo tem canudo, têm que receber o justo. O que não ganharem aqui, vão ganhar lá fora. Os que têm poucos estudos, dizem que dar no duro por um prato de sopa, sem sequer arranjar onde morar, "não quero isto p'ra minha vida", e vão-se embora também. De maneira que, mais dia menos dia, hão de querer quem meta as mãos na massa e suje as unhas, pessoal da ferrugem que se sujeita como nós, e não têm ninguém. Começam a dizer que não falta trabalho, mas não há quem queira trabalhar. Paguem em condições, dêem valor ao trabalho e não se esqueçam que a gente também é gente, e aparece logo quem trabalhe! Porque não podem, porque a situação está difícil, que primeiro têm que ganhar para depois poderem pagar, e tal e coiso. Usam o nosso o nosso trabalho como se fosse um banco, e quando corre bem, esquecem-se de pagar juros, quando dá para o torto " adeus, ó vai-te embora, vem outro para o teu lugar". Mas cada vez somos menos, de maneira que está a chegar a hora em que se quer, paga, se não quer, ponha as notas a fazer o serviço! Vocês vão ver…
Vira-se para trás, ergue o copo, roda à esquerda e à direita, para localizar a audiência – À nossa! – e emborca o último trago. Limpa os cantos do sorriso e lança a beata ao chão, – Vai apanhar, que é biodegradante! Dá o devaneio por terminado e desafia o comparsa na disputa – São dois finos e uma empalhada! – para apurar o campeão, que cospe mais longe, os caroços de azeitona – Grande javardo! Acertaste na chávena da senhora!

A boca da barra sorri.

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