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Chuva

por esquisita, em 28.05.23

 

É Domingo.
De novo começa a semana, já sem Maio bastante para a preencher. Esgota-se o tempo, sem que se cumpra a promessa de água.
Depois da missa, o adro está coberto por um dossel de veludo cristal estofado nas nuvens, que rangem e roncam antes de estourar como foguetes. Nem um borrifo que chegue das alturas, para acamar o pó solto nas corridas das crianças ao sair da igreja. Dizia o pai de Isabel, por ter ouvido no sermão, que chuva em Maio é sinal de boas águas. Estaria a saudar a chegada do Inverno noutras paragens, e nós por cá caminhamos para um sempre Verão. A luz densa, coada pelo chumbo de ameaça líquida, é sinal, mas só sinal, sem águas, nem sermão. Falta água e dessa falta se inquieta o futuro, nas conversas saturadas do opressivo calor. Queixam-se vozes arrastadas em gargantas secas, das cefaleias presentes, trazidas pelo insustentável peso do ar. Da pressão, da carga elétrica, da enorme consumição de não ter água, se lamentam.
Abeira-se à porta o prior, para despedir os fiéis na cerimónia do envio ao almoço dominical. O céu torna a rugir e do alto respinga uma gota gorda. Escorrega duvidosa na testa, talvez um bago de suor. E logo outra, e outra, e outra a fazer diluir as gentes estagnadas no adro. Almas penadas e pingadas, à procura de abrigo, por ter chegado a bendita água. Água sólida e redonda, vinda do céu. Sem demora, se vai maldizer o chuveiro de berlindes.
Assim é o Domingo.

 

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Amuo

por esquisita, em 24.05.23

 

Quando cheguei lá cima, a porta estava aberta, mas ninguém para me receber. Já lá vai o tempo em que fazíamos cerimónia. Fui entrando. Na sala, nada, na cozinha, ninguém, na casa de banho bati, sem resposta. Com os estores corridos e a luz apagada, só podia estar no quarto.
– Estás doente!? – perguntei.
– Hum, hum!
– Sentes-te bem? – para confirmar.
– Hum!
– Estás chateado?– silêncio.
Vou às apalpadelas até à cama, e não é que o homem estava enfiado por debaixo de cobertores e lençóis, todo vestido. Calças, sapatos, camisa e gravata já com duas voltas ao pescoço, enrolado como um recém nascido contrariado para nascer.
–Anda cá, que te dou mimo! – nem sequer se mexeu.
Está bem assim, amuar também faz falta.
– Mas olha que é um passo atrás e dois à frente! – nada.
– Tu ouviste!!!?
– Hum!

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Monstro

por esquisita, em 19.05.23

 

"E se o monstro vier?"
"Garanto que não vem. Falam por falar. Se ninguém o viu, é certo que não existe!"
"Mas se sem existir, vier?"
Os monstros que não existem, são os da pior espécie…

Engendravam-lhe os mais comoventes enredos: segredos ocultos de um louco amor proibido, frutos perdidos ao nascer, flores arrancadas à vida em tenra idade, esperanças desfeitas, desmanchos involuntários ou forçados.
Aconchegava o pano da louça com doçura, embalava sussurrando baixinho para nanar. Se pediam, mostrava primeiro o sorriso, depois a boneca desgrenhada, zarolha e suja, que criava ao peito.
Dos novelos que dobavam, só o seu bebé era real.

…tinha esquecido, mas sei bem que são.
"Basta chamar e virei eu, para lhe dar tantas, tantas, tantas, que se há de arrepender de ter vindo, de ser monstro e de existir!"

 

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Maria José

por esquisita, em 09.05.23

 

As coisas que me passam pela cabeça!

Cara Maria José… (é melhor, não. Vai pensar que é uma piada de mau gosto ou que lhe estou a regatear os honorários. Embora seja sempre tão solícita a oferecer os seus préstimos, não pode deixar passar a oferta sem que seja justamente remunerada. Se é do corpo que lhe sai o sustento, só faltava que não se fizesse pagar, e bem. Não quero melindres, nem isto é maneira de começar uma conversa. Parece coisa de carta, e quem escreveu a carta foi a outra. Entre ela e a outra, comum é o nome. Não só o nome, talvez, mas se muito importa o nome que nos dão, mais importa o nome que queremos. E se digo ela e for ile ou elu? Não sei ler elx. Já nem sei ler… estou perdida na gramática. Vejo-me à rasca para escrever e agora até a falar me ensarilho. Tenho a sensação de estar a caducar e assalta-me a certeza de em breve me tornar obscenamente ultrapassada nas palavras. Atormenta-me ofender, tanto quanto a possibilidade de vir a ter medo de dizer. Ficar sem voz, calada por medo… para o que eu estava guardada!)
Amiga Maria José… (mas amiga de quem, há-de pensar ela. Bom dia, boa tarde, isto e aquilo e mais o tempo, saúdinha, passe bem. Não há cá confidências, nem intrigas, conversas banais, nada ilustradas. Não me passa pela cabeça falar-lhe do "heterónimo feminine". Ainda esfreguei os olhos duas vezes, mas não é gralha nem miopia entranhada. Sou eu a entrar em declínio. Eu é que sou um asno, ou uma asna mal travada, que suporta a madre "reprodutora da norma". Coisa linda, estas imagens! Não me atrevo a questionar o género de Antónios que lhe passaram pela vida, nem dos serralheiros bem parecidos que namora. Esses conheço-os eu bem, ajudantes, oficiais, encarregados fluidos para me fazerem a cabeça em água ou de fibra neutra para me deixarem a obra em águas de bacalhau. Que se deve perguntar e não me atrevo… a mim ninguém perguntou nada: faz-te homem, mulher , o que é que custa?)
Ó Maria José… (vai-me mandar à erva, é quase certo)

 

 

 

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Cantiga

por esquisita, em 03.05.23

 

Tinha decidido que não me metia nisto. Não sou de dar conselhos, mas vendo bem é só uma cantiga.

Para desopilar o fígado, podem ver o filme completo.

 

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