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As fotografias perderam corpo e os álbuns volumosamente palpáveis, caíram em desuso, mas ainda pesam sobre os joelhos, ao virar de cada página.
Esse foi o tempo do impulso e do improviso.
Acordar com o sol a pino, curar a noite ao som da rádio, ganhar balanço de música em música, até que alguma notícia fizesse saltar da cama – E quem as fosse ver, antes que as afoguem?
Nem planos, nem bagagem ou reservas. Nada! Do trajeto, nem um rascunho alinhavado, e até o mapa era escusado quando a vontade chega e sobra. Leva-se a máquina para guardar o que se viu e basta – Vamos subir aos montes!
E fomos, por novas estradas curtas e longos caminhos velhos, sabendo que no cangalho que nos levava, tudo demora. Virar costas ao mar era custoso, contudo aceita-se pôr freio à urgência de chegar, por condizer com a aventura de descobrir um destino mais que remoto no espaço e no tempo.
A noite cai cedo em dias curtos de Outono, e quando por fim se pode dizer, terra à vista, não há pelas ruas vivalma para ver ou a quem perguntar. O lugar pacato, fora de horas, obriga a deixar o plano para o dia seguinte, mas não sem antes tratar do estômago. Terá sido no "Volante", ou no "Travão", ou coisa que o valha, que pelo nome até parecia predizer que a noite se vai passar no carro, por não haver onde ficar. Se tem de ser, será, que não nos demove o relento da serra e até se lhe pode juntar a poesia de adormecer com o parabrisas salpicado de estrelas ou ajudar na alvorada.
Ainda é pouco mais que madrugada, e para investigar o rumo exato, faz falta a quem perguntar. Lá estava a providencial avozinha que anda aos gravetos para acender o lume – Vindes ver os riscos? Ide por esse caminho a riba, e é do outro lado abaixo. Mais, não sei! – era pouco, mas já era um começo.
Chegados ao cume, umas quantas tendas e um caçador, que prontamente declara ter ficado de guarda por não ser apreciador de caça. Vem pelos bons ares, pela paisagem, pelo convívio, pela comida e pela bebida, e vem connosco também, se lhe dermos boleia.
Todos juntos, encosta abaixo, esperava-nos muito solavanco, no caminho estreito de terra batida. Nada que atrapalhasse os planos de descer ao fundo do tempo. Não contávamos, porém, ser perseguidos com buzinadelas a reclamarem ultrapassagem. No retrovisor, uma imensa nuvem de pó ganhou a forma de um destemido cavaleiro montado numa acelera tresloucada. Passou-nos adiante, com tanta ligeireza no andar e tão grande desprezo pelos predicados rudimentares da via, que a espaços curtos, derrapava e ia ao chão. Com toda a cautela para não o atropelar, acabamos por chegar ao destino, praticamente em simultâneo. Após abrir a vedação e picar o ponto, o alvoroço serenou e o rapaz recolheu ao contentor que lhe servia de guarita. Entretanto, aproveitando o caminho aberto, tratamos de entrar para investigar as tão valiosas pedras. A bem da verdade, não faltavam penedos, mas por muito que fosse o empenho na busca, dos riscos nem rasto. Aos primeiros sinais de cansaço, somaram-se os brados do rapaz. Por conta de uma farda mal enjorcada, tinha se tornado no segurança de guarda ao tesouro – Nem pensar! Zona interdita! – Não podíamos transpor a vedação, muito menos tirar fotografias a pormenores – Podem procurar do outro lado do rio!
Atingiu-nos forte, aquela evidência. Não seriam necessários mais do que uns breves minutos de ponderação, para saber que não as iríamos nunca descobrir.
Não fosse o feliz acaso – Olha aqui um porco! E está assinado! – do nosso mais recente amigo ter feito o achado de um animal. O caçador renegado, por instinto, não tardou a disparar.
Sobre como conseguimos conquistar a simpatia do segurança e nos foi possível viver a experiência única de encontrar as gravuras, nada se pode acrescentar. Prometemos solenemente, não atentar contra o património nem revelar a transgressão.
Fica o registo, em papel e na pedra, do porco assinado.
Por ser sempre tão atento aos meus desejos e condescendente para com as minhas vontades – talvez até um pouco permissivo nos caprichos – era difícil compreender aquela recusa definitiva e incontestável.
Não se abre!!!
Eu argumentava com razões que me pareciam evidentes. Fazia parte do pedido de notícias, das saudades e dos beijinhos, nas costas do postal. A possível nota de vinte escudos para ajudar à compra dos patins, estaria à minha espera entre as duas folhas da carta perfumada. Se fosse uma daquelas encomendas que o Sr. Fernando trazia no fundo do saco de couro, podia contar com os caramelos embrulhados no papel Kraft, ou quem sabe, com a camisola tricotada. A avó nunca se esquecia de mim.
Protestava a injustiça, pedia justificações.
Não tem o nosso nome no destinatário, não abrimos!
Toda a intimidade é inviolável. A correspondência entre mãe e filha, ainda que inclua a neta, também.
Para não me ver triste, dava-me abraços e beijos, ou cinco escudos para pôr no mialheiro, ou uma sombrinha de chocolate e prometia que íamos os dois aprender a tricotar. Ficávamos à espera que a mãe voltasse na sexta-feira, para revelar o que era dela.
Ensinava-me o respeito, mas sem querer que eu soubesse que repudiava um direito. Talvez, por o considerar de tal forma aberrante, nunca quis que o conhecesse.
Não tenho foto e dá-me muito mau jeito dizer raiVas, desculpem. É assim:
Ingredientes
Preparação
Fazem-se ao serão, depois da cozinha arrumada. São rijas e doces. Se quiserem tentar, espero que gostem, como eu gosto.
Nicolau, recolhido no claustro, esconde-se no canto. Descobri-lo na sombra faz barulho, prejudica a saúde dos doentes que devem descansar em silêncio, para não serem mais doentes. As crianças saudáveis que correm e gritam de excitação à vista de um pinguim, não devem abandonar o recreio e procurar o Nicolau. Visitá-lo em saúde é transgredir, tanto como sujar a bata branca no adro da escola dos rapazes, em brincadeiras despropositadas que justifiquem a visita.
Como rasgaste os joelhos?
A saltar da estátua do bombeiro!
Embora lhe censurem a forma de tentação infantil, desrespeitar a gravidade do bombeiro desagrada aos crescidos.
Menina feia!
Álcoois e tinturas, compressas e ligaduras tratam feridas, mas a potência máxima do poder curativo, capaz de secar lágrimas e extinguir queixumes, pertence ao Nicolau.
Posso vê-lo?
Se o Senhor Nicolau, tivesse chegado a médico, bem poderia tratar os doentes todos e os joelhos também.
Ir buscar o livro e pousá-lo sobre a mesa, deixar as mãos pousadas a seu lado, impedindo que o dedo guie as letras, é o começo. Afinar a voz para que saia constante e clara em voltinha transparentes de emoção, desagrava as ofensas involuntárias. Desgostar os crescidos que têm que nos amar, assusta.
Ler tudo sem soletrar e terminar com um suspiro e um sorriso, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e os olhos brilhantes de satisfação.
Linda menina!
Só falta mesmo o remate esmerado da inocente astúcia infantil, em tom doce de questão curiosa.
Como é Nicolau, em latim?
Mas sem falar da caixa. Os crescidos não gostam de explicar a caixa. Falam de voar para o céu e outras coisas sem sentido. Atrapalham-se, por nunca terem descoberto que ao afagar a brancura gordurosa do peito do Nicolau, o fazem agitar asas de Arcanjo, Miguel, poeta e escritor, ou pinguim. Se for doutor, trata joelhos rasgados.
É Nicolaus!
Como se fosse plural. É então, muito bicho igual a todos os bichos que juntou.
Depois, fica tudo perdoado.
Tenho coisas muito minhas, completamente contrárias a mim.
Daria em doida, se não tivesse conseguido chegar antes das três, para recolher a roupa. Em simultâneo, pouco me afligem mitos e lendas pendurados no estendal.
Não descubro em mim contradição, porque se a avó da minha avó ouviu contar à sua avó, e todas elas cumpriram, também eu hei-de saber acomodar o que não tem explicação.
Tivesse a rapariga de Mataduços ouvido a avó!
Não se descuidasse ela noutros afazeres, deixando pela hora nona, os lençóis na corda, e não teria passado o resto da vida ajoelhada nas pedras da ribeira de Esgueira, a esfregar as cinco manchas de sangue.
Coisas muito minhas…
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