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Primavera

por esquisita, em 28.03.23

 


Ao sair de casa, pediam para que voltasse igual. Prometia voltar igual e regressava igual, mas por essa altura já as ervas começavam a crescer por entre as pedras da calçada.

Só as mesmas ruas e estradas, mas mais lisas e direitas, sem lombas, sem curvas ou esquinas a cruzar outros caminhos. Tudo igual. A cabeça estranha, a cabeça queixa-se. O corpo vai sobrepondo camadas de aceleração. Sacos de areia forrados de ações urgentes, a proteger trincheiras no entendimento, por ser muito lenta a cabeça a reconstruir o fundamento. Alcatrão, o mesmo na auto estrada sem sentido, a mesma direção. A cabeça estranha, a cabeça queixa-se, cala-se a cabeça de palavras e ela foge para a linguagem primordial... E então, desligar o motor, atirar-se ao asfalto e feroz gritar como um animal?
Princípio e fim, o mesmo, em meio e caminho igual.
[...]
Foi nesse dia que fiz das minhas mãos, nascer a Primavera. Vesti-lhe gemas e açúcar e pintei-lhe os lábios de vermelho. Reparo agora que lhe calhou em sorte o rosto da Rita Magarefa enquanto jovem. Nunca a conheci nova, a não ser pela tintura do cabelo e pelo corte rente das unhas. Dizem que era alegre e desembaraçada. Boa a desmanchar e desossar, mas que não nasceu para abater. Tão pouco, para isso, a Primavera nasceu.

Do mundo vazio, voltava igual. Se perguntavam, respondia. Contava como o vazio de passos a pisar as pedras, era igual ao mundo alcançado de varandas e janelas.

Sobre as ervas que crescem, nada dizia.

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Procura

por esquisita, em 21.03.23

 

Quando voltaram a ficar sozinhos,
não encontraram.
Tiveram de procurar
Espreitaram o interior das gavetas,
e as pregas do sofá,
entre as folhas dos livros lidos,
nos ficheiros sem pasta e no jornal amassado,
que enche a pasta por usar
Exploraram dentro de tachos e panelas,
no fundo dos copos de pé alto e das chávenas de café
em cima da cama, debaixo da cama,
remexeram, tentaram revolver
o miolo de sumaúma das almofadas
Sacudindo os cobertores e os lençóis,
o mecanismo quebrado do despertador
e as molas pasmadas do colchão.
Revistaram os bolsos dos casacos
a bainha da mini saia
e dentro da mala guardada,
na prateleira de cima do guarda fatos,
nas caixas dos sapatos por estrear,
Não encontraram,
nem querem crer que se perdeu
em algum lado,
(que já não sabem)
estará guardado
Quando voltaram a ficar sozinhos,
não encontraram
Talvez na rua
ou num jardim onde seja primavera,
para de novo se encontrarem,
terão de namorar.

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Reunião

por esquisita, em 14.03.23

 


Em princípio, a escolha do local parece ser perfeita, por permitir que fique tudo em casa, evitando que se vão armar escândalos em sítios que não nos são familiares. A falta de conforto do hall de entrada, soluciona-se com uns quantos banquinhos de campanha. Os mais prevenidos trazem-os em excesso, a contar com os atletas que mais cedo ou mais tarde se vão abaixo das pernas. Computador e impressora, papéis e papeladas, estão a cargo do administrador e do secretário. De forma expedita montam a banca num abrir e fechar de olhos.
Pelas sete da tarde estão resolvidas as questões logísticas, e a ideia do acerto na escolha do local é reforçada por haver o indispensável quórum. Eventuais Pilatos, ou ficam recolhidos em casa a lavar as mãos, ou trancados na rua, impedidos de as lavar. Pelo hall, não passa ninguém, sem tomar parte na solução desta bronca.
Presentes à assembleia estão os que por força das circunstâncias não podem falhar, mais o empreiteiro e o técnico dos elevadores, chamados para prestar esclarecimentos adicionais, e para compor o ramalhete, uma advogada.
Se ocorrem noutras paragens, reuniões mais civilizadas, não é do conhecimento de quem escreve. Esta em particular e dadas as circunstâncias, tem à partida tudo para exceder qualquer boa peixeirada. A saber: dívida de pai incógnito, que ao chegar à maioridade dos milhares graúdos, exige a todos o reconhecimento da paternidade.
Tudo começa dentro de uma certa cordialidade, que sem demora se revela insuficiente para manter a paz podre. Às oito, a caldeira começa a ferver. Insinuações, atropelos, intervenções a despropósito, dedos na ferida, justificações esfarrapadas, insultos velados e explícitos, tudo a centrifugar a alta rotação.
Reuniões de condomínio são com certeza, matéria para estudo aprofundado do comportamento humano. Fica para quem o souber fazer.
Resumindo o que é longo e não entrando em detalhes escabrosos, já tem a reunião umas duas horas bem contadas, quando o do 3º Esq se começa a picar com o dos elevadores. A propósito não se sabe bem de quê, subiu-lhe a raiva à cabeça a ponto de lhe ficarem os olhos raiados de sangue e as veias a latejar nas têmporas. Gesticula, esbraveja, rodopia sobre os calcanhares como uma bicha de rabear e sai desencabrestado, escada a cima – EU NÃO LHE ADMITO! Ouviu!? EU NÃO LHE ADMITO!
Por esta altura, a locomotiva em que segue a assembleia, tem um tal andamento, que fanicos e chiliques individuais, não conseguem deter. Se quer sair, pois que saia, e siga o circo.
Uma hora depois, já o técnico dos elevadores foi dispensado de prestar esclarecimentos, quando retorna o do 3º Esq, em perfeita tranquilidade de espírito e compostura de modos. Trocam-se olhares inquisitivos, espantados pelo milagre da recuperação do homem que ainda há pouco estava à beira de uma trombose. Antes assim.
À quinta hora, a coisa começa a perder o gás. O cansaço faz-se notar, muito embora vá surgindo um ou outro reacendimento, mas já sem o ímpeto inicial. Curiosamente, o do 3⁰ Esq, torna-se um dos participantes mais comedido nas palavras e moderado nos repentes. Fez-lhe bem desabafar, ficou mais aliviado, talvez.
Por volta da uma da manhã a saturação obriga ao entendimento, que na prática equivale a entendimento nenhum.
Bem vistas as coisas, o hall de entrada não é a escolha mais correta. Melhor será tornar a reunir, no conforto da sala de audiências de um tribunal.
Enquanto se aguarda que o secretário ultime a ata, saem à rua os condóminos ["condónimos", não consigo resistir, desculpem] absolutamente exaustos. Para aliviar a tensão, esfumam-se ressentimentos e amuos, ao sabor de um cigarrinho. Trocam-se desabafos e queixumes: Seis horas extenuantes, após um dia de trabalho, tantos nervos, tanta emoção e tudo isto sem sequer se ter jantado…
– Sem ter jantado!? – diz o do 3ºEsq. – Mas o que é que vocês pensam que eu fui fazer lá em cima?

Seis horas de reunião, seis horas!

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Ilha Primeira

por esquisita, em 10.03.23

 

O paizinho, já tocado pela loucura que no futuro o irá tomar por completo, continua a manter o aprumo. Abre a gaveta, escolhe de entre as camisas brancas, as que lhe parecem mais alvas e bem engomadas. Com todo o cuidado, acomoda-as uma a uma, na maleta pousada sobre a cama. Diligente, verifica pregas e alisa rugas, ajeita punhos e compõe colarinhos. Está tudo em ordem. Junta os fechos, afivela as correias, e sai para ir apanhar o navio. Tem assuntos de grande importância a tratar no continente, convém que se apresente à altura das circunstâncias. Mal transpõe a porta do quarto, é assaltado pela dúvida – Terei as camisas em ordem? Pousa de novo a maleta, abre-lhe a tampa e avalia – Esta vai em cima, para não se enrugar! Esta vai em cima, para não se enrugar! Esta vai em cima… Sai ligeiro rumo ao cais, não vá perder o navio.
A mãezinha, recém acostumada ao sobressalto que no futuro lhe vai consumir os dias, mantém o aprumo. Tira o casaco de fazenda do armário, aconchega o lenço ao pescoço, compõe os ganchos no cabelo. Deixa para trás, meia dúzia de camisas brancas sobre a cama. Sai apressada, evitando escorregar nos seixos da rua que leva à praia.
O dia está a acabar, o mar está calmo, os pescadores remendam as redes encostados ao casco dos barcos. Olham o homem parado ao fundo do trapiche, fixo no horizonte. Olham, remendam e comentam – Está outra vez, à espera do navio!
O paizinho volta para casa. Voltam os dois de mão dada. A mãezinha, traz maleta vazia.
Olham, remendam e comentam – Nesta ilha não atraca navio!

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9

por esquisita, em 08.03.23

 

Deixa que chore!
Olha que se estraga!
E eu gelada, tremia.
Vinha a avó, muda e queda,
a acenar com a cabeça,
que sim,
que sabia
não ser imaginação
o frio que eu sentia,
se não te tivesse nos braços.
Muda e queda, dizia
Dá-lhe mimo!
Dá-lhe colo!
Dá-lhe muito, muito, muito!

 

Agora que tenho nove anos de idade, vou servir para casa de uns senhores que quiseram ficar comigo. A minha mãe disse-lhes que já sei fazer muita coisa. Sei pôr a comida ao lume e fazer as camas e lavar a roupa e deixar tudo asseado. Também posso tomar conta dos meninos, como faço com os meus irmãos. Sou eu que a ajudo a governar a casa, desde que o meu pai teve o acidente. Esteve muito tempo entrevado e o patrão teve que pôr outro no lugar dele. Depois, como ficou tolhido de um braço, o patrão já não o quis de volta. Foi ele que falou à minha mãe destes senhores, para onde vou. Acho que ainda são aparentados. Têm uma casa muito bem posta, com coisas boas e finas, e querem ter tudo sempre em ordem. A criada já está a ficar velha e a senhora é doente dos nervos, faz-lhes falta uma rapariga para ajudar. Antes do acidente, vivíamos remediados com o que o meu pai ganhava. Andei na escola até à segunda classe. Aprendi as letras, custa-me a ler, mas as contas faço-as todas de cabeça. A mestra até disse que eu havia de dar para os estudos. Por isso se a senhora me mandar fazer recados, ou ir ao mercado, não me deixo enganar nos trocos. O meu pai recomendou-me, que havia de ser sempre muita séria quando tivesse que apresentar contas aos senhores e que não devia querer nada que não fosse meu, mas que podia aceitar o que me dessem. Disse para só falar quando me perguntassem alguma coisa e para dizer sempre "desculpe", "se faz favor" e "muito obrigada".

 

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Surrealismo

por esquisita, em 06.03.23

 

A dose foi forte. Tenho "Surreal!", até vir o comunismo.
O tipo está indignado: "Surreal!"
Quer mostrar admiração: "Surreal!"
Desagrada-lhe: "Surreal!"
Está para além da expectativa: "Surreal!"
Mais isto e mais aquilo: "Surreal!"
Toca e vira: "Surreal!", "Surreal!", "Surreal!"
Uma manhã inteira nisto! O "Surreal" a dar-me nos nervos e eu a começar a ferver.
Foi assim, que pela hora do almoço, e sem querer, (asseguro que foi sem querer) lhe propus jogar ao cadáver esquisito. Ou isso, ou vinho novo, já não sei.
"Você também é um bocadinho esquisita…"
Então, não sou!?
Assim não se pode conversar! É su…
Queres ver que já fui apanhada!
Longe vá o andaço !

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Lapiseira

por esquisita, em 01.03.23

 

Que posso eu dizer, desta minha ferramenta? Chamar-lhe companheira, seria bonito e era justo! E que mais? Tem a tinta lascada, está velha! Pois está, e ainda bem!
Começámos juntas. Ela condenada pelos tempos, "Tem os dias contados", e eu avisada pela experiência, "É a mão que domina a lapiseira, não deixe que a lapiseira a domine!"
Lérias!
Por mais que os tempos me assistam a criação, por muito que modelos e parâmetros me auxiliem nas soluções, é pela lapiseira que as ideias chegam ao mundo. Creio mesmo, que é um canal de duas vias, por onde tanto sai, como entra o pensamento.

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Quando nos conhecemos, o menino do poço era já um homem. Mais do que um homem, pareceu-me à primeira vista, um feroz guerreiro, de quatro côvados e um palmo de altura, capaz de me esmagar com um só piscar de olhos. Nem tanto me intimidaram, a corpulência excessiva ou cabelo e barba desgrenhados, que compunham a figura de um jovem Adamastor, mas o olhar, ora esquivo, ora intenso, sim, causou efeito. Receava, sobretudo, que me entendesse como um desafio. Seja o que for - pensei - teremos que nos entender!
Não tardou a revelar, como o divertia apresentar esse cartão de visita enganoso, prontamente desmentido com modos brandos e palavras moderadas.
Deu um murro na prancha, "Deixa-os falar! Manda-os f@der!", olhou-me nos olhos e ofereceu-me a sua lapiseira. Recebeu-me bem.
A lapiseira está velha. Eu e o menino do poço também.
É bom que assim seja!

 

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