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Filtro

por esquisita, em 27.01.23

 

Espelho meu, espelho meu…

 

Que olhos de tão profundo azul

e que pele tão delicada!

Esse sorriso, mais que branco,

e a pestana escura e alongada,

são de alguém que conheço,

mas estão a deixar-me intrigada!

Diz-me, serás mesmo tu?

 

...cala-te, que ninguém te perguntou nada!

 

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Referência

por esquisita, em 25.01.23

 

Quem me ensinou a morte impura para se dizer? Quero falar do Telmo. Vou falar do Telmo. O Telmo está morto.

Conheci-o num desses altares de memória, adornados de flores e cera, que presumem vencer o esquecimento. Era recente a sua eternidade, recém acrescentada a minha saudade, também.

Nunca o conheci de outra forma. Tornou-se referência minha, num dia de desnorte. Perdi-me, sim! Perdi-me literalmente, num labirinto de ramos viçosos e flores murchas, retratos, nomes, datas, estátuas e estatuetas, cruzes e crucifixos, lamparinas, pedras lavadas, pedras sujas e gastas, montes de terra revolta, pequenos ressaltos de terra em que tropeço.

Desorientada, sem haver a quem chamar em auxílio, por inexistir quem venha por mim guiar o caminho, deixei-me cair de joelhos.

Não é bom chorar pela manhã, ao acordar. E eu não choro! Eu atiro-me para o chão e semeio a raiva como uma criança contrariada nos seus caprichos.

O Telmo sorria para mim, um perpétuo sorriso forçado de foto tipo passe. Gravados em bloco de granito cinzento, letras e números riscados na pedra, sobre o peito.

TELMO P.

xx-xx-1992

xx-xx-2014

ETERNA SAUDADE

Miúda mimada, de que é feita a tua dor?

Do mesmo pó e lama com que me choram? 

Ergui-me.

Como te atreves?

E era logo ali. A dois passos.

O que busco não é nada, mas afeiçoei-me à lomba de terra, e no caminho o Telmo é referência.

 

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Eu vi!

por esquisita, em 19.01.23

 

A cada instante, em toda a parte,

acontecem

(sem que a ninguém interesse) 

coisas que mudam a vida da gente.

A ela, os cães lambem a pele e abocanham a carne.

Sabe a gordura e a pimenta.

Arde nos olhos.

 

 

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Festa

por esquisita, em 08.01.23

 

Nunca serei grande festeira, nem tão pouco, alguma vez me negarei à festa que encerra as festas. 

Tanto e sempre se hão de multiplicar as mãos postas ao alto, as nassas erguidas na cana, as sombrinhas do avesso, quanto certo é tornar a vontade de pão doce, seco e duro, a saraivar no abrir do ano.

Toca a sineta! 

Aí vai o meu peso em cavacas, Santo da minh' alma!

Aqui estamos, para as receber, e se a disputa se faz grande, maior será a reinação.

Tudo folga, tudo dança, a alegria é geral e é grande e boa, a festa. Faça chuva ou faça sol, é grande e boa, sim senhor!

Que o nosso Menino, rapioqueiro, casamenteiro e milagreiro do melhor, bem a merece!

Basta dar-lhe uma palavrinha, em tudo nos há-de atender – Ai sim, Ai sim! – sem esquecer tento na língua, quando dele se falar – Ai sim, ai não!

Deixo-te um ramo de cravos, Santo do meu coração!

 

Quanto cresceu o nosso Menino!

Quanto cresci eu, também.

Caminho por entre o multidão, ao longo das tendas que eram poucas e agora são muitas, como o povo. Estou sozinha.

Procuro pela bola de serradura, embrulhada no papel de prata, que a guita divide em gomos. Escolho o dedo para o elástico. Olho a mão e está vazia.

Procuro a mão de J, filho de L e pai de L que teve um avô J como eu tive, e que por ser eu, não vai deixar J nenhum.

Olho a mão e não está.

Onde está a bola de serradura, que me prometeste pela festa?

Onde estás?

A subir as escadinhas, para ir pagar a promessa? Junto ao coreto, a ouvir a banda tocar? À porta da capela, depois da missa, talvez…

E é já hora de comer. Almoço farto, almoço de celebrar em família, um bairro inteiro a celebrar, uma só família em festa!

Onde estás? Onde estão todos?

Vejo agora que tanto cresceu a festa, quanto a minha festa mingou, mas a festa ainda é, e será, um eu maior.

 

 

 

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Hora da visita

por esquisita, em 05.01.23

 

Tia Micá Coutinho, nascida Maria do Carmo Ataíde e Cunha, e Ti Micas Trauliteira, de sua graça completa Maria e mais nada, que de onde lhe veio o traulito não tem memória, (foi do marido que Deus tem, mas nem quer que lhe lembre) estavam destinadas a formar um par, partilhando a mesma sorte.
Isto das sortes, vai dos nomes, é bom de ver. Chamem-lhe cisma ou preconceito, mas não é baldeado o tempo que se perde com nomeações. Siga!
Sentadas lado a lado, abrem os olhos alternadamente, ora um, ora outro, a horas pares o direito, a horas ímpares o esquerdo. Dormem como os pássaros empoleirados, cai, não cai, numa só pata. Às meias horas trocam de poiso, sem nunca deixar a dupla descalça. Somadas as patas, fazem duas. Micas e Micá, são uma só sorte emparelhada.
Para lhes atormentar o sossego, e o equilíbrio de sempre-em-pé, estão do outro lado da gaiola, quatro marmanjos inominados, que por tudo e por nada se engalfinham aos pares. Como quarteto de cardeais, abancados frente a frente, à moda de rosa dos ventos uivantes, para uma partida de cartas. Intermináveis batalhas de vazio no anonimato. Assim se passam os dias, ou noites, ou o que for. Já o tempo não tem nome, e vai de puxar a manilha e bater com ela na mesa, que é como quem diz, toma lá que já te quilhei, para de seguida engolir em seco, porque o dois era de trunfo (o de Ouros, por sinal). Corta, não corta, descobre-se a manigância e está a barraca armada. Dois por dois, dá sempre empate e no futebol ganha quem marca. Só mais um já é ganhar. Mas há regras, há preceitos a cumprir: Meus amigos tenham juízo! Haja lisura meus senhores!
Com gente desta laia, um desassossego, uma maçada! O diabo a sete, o cabo dos trabalhos, a dobrar!
Miquinhas, Miquinhas, vamos embora! Estamos à espera de quê?
Esperamos pela visita dos filhos que não tivemos. Os que temos não podem vir!

 

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Verde

por esquisita, em 02.01.23

 

Não posso querer Janeiro
Não posso!
Terei de o recusar!
Esconjuro, insulto, rogo pragas,
maldições!
Parto louça, espalho lixo,
arranco o cabelo todo,
cuspo fogo, se preciso for!
Janeiro não!
Todo o tipo de fitas,
dramas e angústias,
malabarismos diversos,
crises e horrores,
Comigo subirá
à cena a suprema insurreição!
Não o quero! Acabou!
E então…
Mais forte me ferra a fúria
e maior a raiva que me fere,
por crer que céu e sol,
conspiram verde,
contra a vontade que sou,
Contra mim, e porquê!?
Para que tome Janeiro por esperança!
Não posso querer,
não posso,
nem contra a verde esperança,
posso lutar,
mas há-de ser sem querer,
que aceito o irreprimível desejo
de amadurar!
Contrariada, a contra gosto,
o vou esperar
e cuidarei que seja doce…

20230101_193332.jpg

 

 

 

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