Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Era assim que me querias?
Não quis crer que me quisesses, nem criei ilusões.
Se assim me queres, assim me tens!
Quero-te como fores.
Sou eu quem decide
quais são as palavras e os gestos
que me podem magoar.
O que escolho que menos me magoe, é sempre o que me magoa mais…
Amigo,
Em nada me fere a recordação do nosso atribulado encontro, tão pouco partilho a opinião de quem me recomenda cautela.
Num momento de aflição, prometeu recompensa em troca de socorro. Num impulso irrefletido, coloquei a minha cabeça à mercê dos seus dentes.
Salvei-lhe a vida, ignorando a prudência. Contrariando o instinto, poupou-me a vida. Estamos quites.
Pelos motivos expostos, sugiro que nos desobriguemos da moral que não nos serve.
Cumprimentos
Mais valia estar calada…
Se acontece por distração, escapar da boca uma "mania de ler", o retorno aprovador, deixa bastante desconforto.
Uns, porque lhe descobriram o verdadeiro gosto e não podem conceber a vida sem ela, outros porque a consideram um espécie de óleo de fígado de bacalhau, custoso de engolir, mas com reconhecidos benefícios para a saúde, todos, porque "Sim senhora, um hábito muito louvável!"
Tudo e todos, a reforçar o elogio da leitura com o seu longo repertório de predicados. Inteiramente de acordo, muito a favor e muito pouco contra. Também se sabe, também se conhece, contudo não era isso…
Por benevolência ou levados ao engano por algum recurso de estilo, deixam passar "mania de ler" como sendo "gosto pela leitura". A leitura dá fruto noutro quintal e para remediar o incómodo, será melhor deslindar o equívoco.
Mais valia estar calada e deixar ficar a coisa assim.
Esta mania é uma coisa distinta que não confere distinção nenhuma. Leva tudo pela frente e não se incomoda com conteúdo ou qualidade. Em estado avançado deixa mesmo de se importar com o sentido.
Juntar letrinhas, como contas de um colar, é uma espécie de vício e só a cabeça sabe, mas nem a si mesma confessa, a satisfação que retira do jogo de formar palavras decifrando os arabescos. É muito tranquilizador, acalma imenso e distrai ainda mais. E para mais se afundar, ainda se juntam exemplos: A bula de um qualquer medicamento, o itinerário da excursão, ementa do restaurante, as instruções da máquina, o rótulo do detergente, o programa das festas e por aí adiante, de asneira em asneira, até ao naufrágio estar consumado. Diz-se tudo, como os malucos, e depois "Ah, então ele é isso!? Realmente… não é bem a mesma coisa!"
Mais valia estar calada, e esquecer explicações.
Assim se perde a oportunidade de passar por pessoa muito culta, bem formada e informada, merecedora de aprovação.
Mais valia estar calada…
Que mania!
I want everyone to understand that I am, in fact, a person.
Paramos para falar de intimidade e privacidade, de expor e de esconder. e o que é, e o que queremos. Trazem-se à baila os diários, que eu quase nego ter, mas logo desfaço para não ter que morder a língua mais adiante.
Tive e devo continuar a ter um diário, perdido numa qualquer gaveta. É pequeno caderno que alguém julgou adequado oferecer a menina em início de adolescência, para que nele segredasse as suas confidências.
Esse livrinho acolhe entre capas rígidas, folhas brancas, agradáveis ao toque e ao olfato, que são guardadas por uma fechadura. Só de pensar em tão rudimentar pinchavelho como guardião da intimidade que se possa confiar ao papel, sinto os músculos da face contraírem-se num sorriso de ternura. Noutra curva, a conversa há de tornar a juntar fechaduras e intimidade, e aí os ânimos serão outros. Por ora, fico-me pelo pelo sorriso, que esta fechadura vale pelo simbolismo e pouco mais valerá…
O Meu Diário, conforme o próprio se intitula em letras douradas, tem vindo a morder-me os calcanhares desde há longos anos, sem que eu nunca lhe tenha verdadeiramente desejado a companhia nem tão pouco tenha reunido coragem de lhe dar um pontapé.
Viajou clandestinamente desde a minha casa primeira, acomodando-se incógnito entre livros e cadernos, para garantir um lugar no primeiro cantinho a que chamei, meu. Trazia a fechadura bem trancada, mas sem chave com quem casar, nem memória do teor do registo protegido.
Sendo a curiosidade um bicho tão guloso como bem servido de engenho, tratou de desmontar a fechadura com mil cuidados e satisfez a vontade com a polpa do apetecido fruto. Muito pouco sumo para tão minucioso trabalho! Uma só entrada, em caligrafia irregular, a descrever o quotidiano banal e sem sabor de um dia de aulas. Uma desilusão escusada, tivesse eu em mente a minha inata tendência de fugir à escrita. Ainda assim a emoção, consolada pela doçura da memória, resolveu deixar recado para o futuro, repetindo a fórmula anterior - o que de mais banal se possa ter passado no próprio dia e acrescendo-lhe, sem grandes pormenores, o mais marcante dos anos faltosos no assento. Findo o registo, devolveu-se a fechadura à sua forma original e tornou o diário à primeira gaveta disponível.
Tem sido assim que a espaços largos e conforme o acaso me faz tropeçar no diário, se tem repetido o ritual, preenchendo por ordem cronológica as já não tão brancas páginas. Por outras palavras: o meu diário resume a trivialidade do dia em que se escangalha a fechadura, seguida de um rol de encontros e desencontros, conquistas e derrotas, começos e despedidas, tudo alinhado secamente e sem grandes floreados. Porque se recompõe a fechadura, não sei dizer ao certo. Talvez seja porque estando fechada se torne mais desafiante ou até mesmo um pouco provocadora.
Coisas da intimidade e privacidade, talvez…
Não conheço nada que se aproxime mais da sensação de voar, que saltar de um baloiço a alta velocidade.
Sorrateira, saio pé ante pé. Há que aproveitar as ocasiões, que os baloiços são só dois e a procura é muita.
Ora vamos lá levantar voo. Motor a trabalhar, que é como quem diz, coração a bater forte e um, dois, três… pelo imenso céu fora, feliz e livre, sem asas nem avião.
Haverá coisa melhor?
Não sei nem conheço.
As aterragens é que são mais complicadas, mas nada que não se resolva. Basta levantar a cabeça e… uma impressão na nuca, umas estrelinhas a piscar, apaga-se a luz.
Torna-se a fazer dia, lá para o lado do hospital, ao som de um muito intrigado:
"Minha senhora, tem a certeza que foi um baloiço? São 7h da manhã e a menina está descalça e em pijama!"
Esta memória foi redigida pela Provecta Rainha da Escrita Esquisita, em resposta ao desafio do Valente Cavaleiro Dom Marco del Merlo
Diz-me que tem a vida arrumada,
os filhos criados,
o trabalho acabado, obra feita,
vontades saciadas,
os vícios sanados,
as contas em dia, saldadas as dívidas,
ilusões desfeitas,
paixões dominadas e o amor consumado, eterno e guardado,
ofensas esquecidas, os pecados perdoados,
a roupa escolhida e as malas feitas…
Agora, diz-me em segredo,
só lhe resta uma mania,
eu que tenha paciência,
porque não se cumprirá a vida
enquanto não voltar a ser
criança
Pequena criança tardia,
minha adorada criança…
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.