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Quem conta um conto...

Vermelho

por esquisita, em 23.02.22

 

Cabeças que rolam, não gritam depois da lâmina se juntar ao cepo. É esta a regra que sabe e conhece desde sempre. Antes, angústia e desespero, esgoelam-se em gritos de horror. Em seguida, silêncio.

Ao nascer do dia, súplicas por misericórdia, bateram delicadamente na vidraça da sua janela, rogando pela execução.

Trocar a cabeça pelos pés, escangalha a ordem das coisas, mas nada retira à força dos seus braços. Também conhece o momento em que a esperança abandona o condenado para o fazer implorar por pena breve. Não se deixa enlear, nada o perturba, não há o que o espante.

Sabe o que tem a fazer.

Decepou-os com um só golpe. Partiram dançando, para se perderem nas profundezas da floresta. Voltarão mais tarde para lembrar, por ora afastam-se para dar tempo e sossego.

Tomou-a nos seus braços. Era leve, muito leve. Só o pouco peso de quem é pouco mais que uma menina.

Levou-a para dentro, para a estender sobre o colchão de palha que lhe serve de cama. Rasgou duas tiras do vestido gasto pela dança interminável de dias e noites, ao sol e à chuva. Com elas enfaixou as pernas que acabara de mutilar, usando toda a brandura possível à brutalidade das suas mãos brutas.

Depois saiu, levando consigo o machado. Esse sim, é inquieto, ávido pelo corte, incapaz de refazer.

Nada disse, saiu.

Deixou-a só, na solidão que governa a casa de um carrasco.

Fez-se noite, ele tornou. 

Tinha talhado para ela, pernas de pau e muletas. 

Ofereceu, ela aceitou.

No lugar dos pés, as ligaduras tingiam-se de um vermelho tão intenso e brilhante como o dos sapatos.

Antes de partir, ela beijou-lhe as mãos.

 

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Não sei

por esquisita, em 18.02.22

 

À primeira hora, antes de chegar 

seria fermento, terra a levedar

Desse chão se vai erguer, 

pela vontade de outro dia,

a fome de amanhecer

Que nome lhe posso dar?

Não sei...

 

Tempo que é agora, antes de partir

acende a fogueira de algum existir

Nessa chama, a arder, a alastrar 

como sopro, semente de cinza, 

sem ter um nome,

teima em lavrar

 

Posto está o sol, depois de brilhar

derrete nas águas o sal desse mar

Sopra vento que anoitece,

alisa a onda que embala,

cala a luz e adormece

Se amanhã, à primeira hora,

se pode tornar chamar, 

não sei...



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Perguntar

por esquisita, em 09.02.22

 

Acredito que perguntar é uma das melhores formas para compreender  certos assuntos. Nesta matéria, o que me interessava era ouvir a opinião direta de alguém próximo, que não se inibe de declarar que os prefere como alvo dos seus afetos e que não hesitaria se tivesse que escolher.

Previa que ao perguntar, me estaria a colocar numa situação de desvantagem e era precisamente isso que me intrigava. Porque raio, havia ela de me querer substituir por um cão ou um gato?

A pergunta tinha um certo toque de drama, que não escondia o meu ressentimento antecipado.

Talvez fosse melhor reformular a questão. Quais são as características que uma pessoa deve reunir para concorrer, em pé de igualdade, à estimação que tinha pelos animais?

Feita deste modo, soaria demasiado direta e agressiva.

Lá arranjei maneira de questionar sem  causar grandes estragos a uma amizade que, sendo já antiga, não estava garantida para assuntos tão sensíveis. 

A resposta não me surpreendeu e na verdade pouco acrescentou ao tenho ouvido por aí. Fez-me o rol:

Nada pedem em troca

Incapazes de ressentimento

Não fazem exigências

Não têm maldade

Sempre amigos 

Fiéis e dedicados

Sempre presentes

Sempre disponíveis

Capazes  de amor ilimitado e incondicional

Ainda pensei em argumentar. Mas para quê?

Bem vistas as coisas, para o comum mortal, reunir tal quantidade de predicados, exigiria percorrer o verdadeiro caminho para a santidade.

Ainda me arriscava a ouvir dizer que os humanos são umas bestas e eu às vezes, tenho mau feitio...

...mas não vou deixar de perguntar. 

 

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Casamos hoje?

por esquisita, em 03.02.22

 

Atrasada,

corro ao quarto,

que já se está a vestir!

Pronta e vaidosa, 

não bato nem peço,

entro para me mostrar

bonita, 

ao mais bonito que já vi

Rodo as flores do vestido

e as da jarra também,

da cortina faço véu...

O que me havia de lembrar!

Casamos hoje? Casamos hoje?

Sorriso branco camisa,

elegante fato novo, diz

hoje não, 

mais tarde quando crescer

Subo e cresço em cima da cama,

salto e pulo no colchão

Já sou grande, sou crescida,

está tomada a decisão

Casamos hoje, que é domingo!

Pendurada no pescoço,

nó de gravata diz 

hoje não,

Faço cara de desgosto

Desculpas de quem não me quer!

Finjo o coração quebrado

pelo noivo que não quer ser

Quero eu! 

Quero, e quero, porque quero!

Menina, tenha juízo!

Mas não se chega a zangar

Dança comigo em volteios,

voamos juntos pelo ar 

Abraço apertado, beijinhos...

Não quero pousar os pés no chão!

 

 

 

 

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