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Razão

por esquisita, em 26.01.22

 

Ele diz que não, mas é fácil acreditar que os tenha fechado antes da hora. Porque é sábado e a luz de inverno deixa adivinhar o fim de mais um dia de trabalho, qualquer pessoa pode cair na tentação de o antecipar.

"O diabo do homem, fechou-nos os portões!"

Senti aproximarem-se os passos miúdos de uma mulher que vinha no meu encalço. Deixou cair a frase ao passar por mim e redobrou energia em direção à saída.

Sucessivos caminhos apagados, têm sido acrescentados a um mapa que me obriga a ir cada vez mais longe. Com o tempo, tenho aprendido a movimentar-me neste labirinto. Não esperava que chegasse tão cedo, a minha vez de cumprir o ritual das homenagens. Houve um tempo em que podia garantir que nunca o faria, mas a vida corre a par com o tempo, tendo uma única garantia. Para que não me tremam as pernas à chegada, nem tenha de me arrastar no regresso, solto o corpo de azáfamas sem justificação, mantenho a cabeça desatenta a significados profundos e esvazio a boca de palavras. Evito os nós, para não tropeçar a cada passo.

Experimentou o trinco, abanou o portão e confirmou o que, à partida parecia evidente. Vendo-me parada e calada, achou que me devia explicar a situação.

"Estamos aqui fechadas! Ainda não percebeu?!"

Eu já tinha percebido, mas não me apetecia responder. Ela também não esperou resposta. Atirou-se aos portões, batendo com os punhos. Não achando suficiente o barulho produzido, largou o balde que trazia na mão, e usou o cabo da vassoura para lhe cascar com quanta força tinha, ao mesmo tempo que chamava por ajuda.

"Venham abrir! Venham abrir!"

Talvez não contasse que o auxílio estivesse tão próximo e lhe valesse tão rápido. Vindo de uma das arrecadações, limpando a mãos a uma toalha, aparece o homem que nos poderia franquear a passagem. Estava, provavelmente, a lavar-se, dando por finda a jornada. Ainda antes de dar atenção a toda aquela algazarra, cumprimentou-me, com um ligeiro aceno de cabeça.

Não me incomoda que me reconheça, mas perturba-me que saiba os meus percursos por dentro. De alguma forma é um dos nós que tenho dificuldade em desatar.

"O que é que se passa aqui? Para quê tanto barulho?

"Então você fecha os portões, sem chamar? Sem tocar o sino!?"

"Mas qual sino, senhora? Aqui não há sino! Tem o horário do outro lado. Ao sábado fecha às cinco!"

E começa uma pequena discussão sobre obrigações e horários, competências e distrações. O problema, que se resolveria de forma rápida e simples com a abertura dos portões, foi sendo esquecido para dar  lugar a uma disputa pela conquista da razão.

Não tinha a menor das intenções de intervir, e não me restava senão aguardar.

Estiveram nisto um bom bocado, sem que se chegasse a conclusão nenhuma.

"Havemos de cá ficar todos"

"Hoje não, mas quando chegar a sua vez, cá estarei para a receber!"

"Insolente!"

Esta troca de palavras iria alimentar indefinidamente a disputa, foi o que pensei. Enganei-me.

Ela apanhou o balde, cruzou os braços e virou-lhe as costas.

Ele encolheu os ombros, foi buscar a chave e abriu a passagem.

Inscrita na pedra que remata os portões, de ambos os lados, pode ler-se a mesma frase

"Mors, Ultima Ratio"

Deve querer dizer alguma coisa.

 

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Agora

por esquisita, em 16.01.22

 

Forte Muro, falta-te força, sobra-te a sombra

É a mim que queres ouvir?

Guardaste com fogo a fraca fronteira

da casa caída

Agora,

receias ruir...

Foste frente caiada, cal viva

na parede suja e esquecida

Agora,

atormenta-te o porvir...

Foste barreira, muralha erguida

no erro de temer errar

Não temas agora perguntar

O que pode a paliçada

que não se pode transpor?

Pode o tempo, pode a vida?

Pode abrigar o amor?

Fraco Muro, se me ouves,

não esperes ouvir por mim,

as respostas que procuro, mas não tenho

Sou só perguntas sem fim!

 

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Sono

por esquisita, em 10.01.22

 

Nasce a luz que lava o escuro e eu lavar as chávenas adormecidas pela madrugada. Água fria, cabeça em água, mãos dormentes...

Então, rosnar maldições aos prazos, que não dormem e aos profetas do fim do mundo, que depois do anúncio e do alarme, devem estar a dormir confiados na minha mania de ser certa, mais no vício de provar o comprovado, que não basta ser igual sem ser melhor.

Depois, jurar que não se repete e tornar a encher a chávena e manter a cama vazia e umas quantas ofensas à estátua, que não quero nem se ergue, quando me deitar para sempre...

Mas quem chegou até aqui… é só mais um bocadinho e um cinzeiro que dorme quase cheio e uns quantos insultos à sorte de sonhar sonho diferente como se não fosse eu a acordar o pesadelo.

Feitas as contas, não custa nada,

o mundo que acabe amanhã, bem disposto e bem desperto,

e bem pode acordar acabado porque eu vou estar a dormir, é quase certo!

 

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Onde estiver

por esquisita, em 07.01.22

 

Do céu, quem possa,

bichos que cantam

fogo ou fumo

Da terra, quem saiba,

animais que ouçam

vento ou chama

Do fundo, quem acredite,

seres que foram

carne e lama

Que procurem,

faz-se tarde!

Que me tragam,

não demorem!

Não quero mais

que não seja tudo

nem nada mais

que não seja

semente de vontade!

 

(Ainda hoje)

 

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