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Contas-me coisas simples, que só sei complicar...
Caiu ao poço, de pouca água gelada, um menino inquieto a experimentar. No fundo do medo encontrou a lembrança do recado e da avó. Não grita pelo frio nem pelo susto mas chora baixinho no escuro, porque ter caído no perigo descuidado.
Fora do poço, falta o menino que a avó tinha avisado e que busca sem sossego e sem saber onde encontrar.
Onde estará o menino? Chama por ele aflita e sem resposta, que o menino bem a ouve mas não a quer ver zangada. Sem descanso, não desiste de o achar. Onde estará o menino? Descobre-o no fundo do poço, onde não devia estar!
Não se zanga a avó, que é maior a aflição. Anda longe, tão longe que só pode tardar, quem lhe possa valer nesta hora.
Então, salta ao poço a avó que nunca lhe vai falhar porque sozinho não se aguenta o menino, e a vida é para guardar.
Juntos no frio do poço, abraçados na escuridão, a avó canta para espantar o medo embalando o menino em oração. Unidos cantam os dois, como quem chama pela luz, tentando enganar o medo com a esperança que demora.
Chegam, pela hora do almoço e não há o que almoçar. Faltam o menino e a avó. Onde podem eles estar? Mas antes que se levante o alvoroço, ouvem o poço a cantar e tudo acaba bem porque logo correm para os ajudar.
...passou o poço e o tempo e a avó volta a saltar. Foi só salvar um menino e não deve demorar.
Conheço-a há muito tempo mas só lá apareço duas ou três vezes por ano.
Devo ser a sua pior cliente.
"Ao sábado trago-a comigo para aqui, sempre areja um bocadinho…(senta-te nesta, que já está desinfetada)… durante a semana deixo-a no centro, mas já se sabe, com isto tudo a acontecer, anda uma pessoa com o coração apertado…"
Está sentada ao fundo, por trás de nós. O espelho inverte a posição e coloca-a à nossa frente. É só um reflexo mas está à nossa frente.
"...faço o que posso por ela, mas não chega, eu sei... nestas coisas sou sozinha, tenho a minha irmã, mas não se pode contar com ela... agora é que eu a percebo... (estavas mesmo a precisar de cá vir)... quando dizia que não os queria porque não se sentia capaz para assumir essa responsabilidade e mais isto e mais aquilo… (então, como vai ser?)… não quis filhos que a prendessem e agora também não se quer prender por ser filha, é o que é…"
Vai espalhando tesouradas rápidas na nuvem que faz chover cabelo à minha volta. Sabe o que faz e sabe preencher silêncio.
"...agora é que eu percebo, sabes… quer a sua liberdade, mas com a responsabilidade não quer nada...(mais um bocadinho nas pontas, não?)... do meu irmão já nem falo...vive cheio de compromissos, não tem tempo...um telefonema nos anos, outro no Natal…mas queres saber a melhor? diz que é homem, que estas coisas são com as filhas, que se for preciso ajuda com as despesas…"
Lá ao fundo parece-me ver um encolher de ombros resignado, mas deve ser só impressão minha, porque tirei os óculos para facilitar o trabalho. Eu, sem eles, vejo o que quero.
"...acredita, que isto me custa e nem é por mim que me queixo, é por ela que ali está... criou-nos a todos, aturou-nos as manias, passou sacrifícios para nos ajudar a começar a vida… e ainda tomou conta do meu pai até ao fim...(vamos secar?)... e olha que ele não era fácil…muito trabalhador, muito sério e amigo do seu amigo, mas isso de era da porta para fora porque em casa… se tu sobesses…"
O secador é um aparelho barulhento que abafa conversas e me transtorna as ideias. Não gosto de secadores.
"... e agora que já não pode, quando lhe falta a saúde...bem, isto agora, com médicos e comprimidos sempre se vai tratando do corpo, para a cabeça é que é mais complicado…"
Ouve, quieta e calada, como se não fosse ela a pessoa de quem se fala.
"...e cá dentro dói sempre… (até pareces outra, quando chegares a casa nem te vão reconhecer)...cá dentro dói até ao fim..."
Ingenuamente olho o espelho, à espera de não me reconhecer.
Acorda!
Sabes que dia é hoje?
Sei! É hoje! Acorda!
Sabes que horas são?
Sei! É agora! Levanta-te!
É hoje? O quê, agora?
É hoje, é agora e se não te levantas, é já e é aqui!
Não sei porque aconteceu assim ou porque é que teria de ser de outra maneira.
Por vezes, nem sei o porquê de as minhas pequenas diferenças, me afastarem das outras mulheres...
se no fundo sou igual a qualquer outra.
Não sei porque motivo me lembrei desta palavra, mas não a consigo declarar inocente de sentido duvidoso.
Por um lado, esconde-se na neutralidade, e tanto promete recompensa como ameaça castigo, mas há nela qualquer coisa que me faz lembrar o calculismo de um jogo.
Por que se isto é um jogo, já ouvi dizer que todos podemos ganhar se ninguém quiser ganhar.
Pode a soma ser diferente?
Aguardo no corredor branco
e na parede branca do corredor branco
é possível medir a dor em
onze números alinhados,
é possível dizer a dor por
cinco frases curtas,
é possível colorir a dor com
seis faces distintas
Aguardo no corredor branco
e no fundo branco do corredor branco
é possível dar a volta ao tempo em
trezentos e sessenta graus,
é possível contar o tempo em
doze traços convergentes,
é possível ouvir o tempo numa
infinita cadência de estalidos
Aguardo no corredor branco
e peço ao tempo e à dor
que ainda seja possível...
manter o branco da esperança
Procurei abrigo no detalhe para me proteger da intensidade do estímulo. Sei bem que, nestas coisas de me perder, a origem está para além dos olhos e da luz.
Junto à porta, vejo um casal imobilizado pelo turbilhão inicial. Recuperam avançando com passos irregulares, ondulando arrebatados pela qualidade do brilho, rodopiando fascinados pela quantidade exuberante das formas.
Imaginei que pudessem acrescentar ao deslumbre, o respeito silencioso da devoção piedosa. Cheguei a supor que neles se tivesse restaurado, inteiro, o efeito original, e que a contemplação dispensasse as palavras para as fazer substituir pela emoção.
Alternando volteios e espanto, aproximavam-se. O homem cumprimenta com um ligeiro aceno de cabeça, a mulher abeira-se um pouco mais para me revelar a sua experiência:
"Isto está lindo!
Está lindo de c#r@!hø!"
Posso estar longe, mas estou em casa.
Se os tempos não fossem o que são e se eu não fosse o que sou, garanto que os teria abraçado.
Podia falar por horas e reforçava o que dizia, com gestos largos e voz grave.
O assunto era recorrente e quem já estava habituado resistia aos tiroteios intensos dos ataques surpresa, abrigando-se por detrás do estirador.
Eu, que tinha chegado há pouco, via a firmeza do traço sacudida pelas explosões repentinas. As descrições sangrentas salpicavam a película com manchas de tinta e os quilómetros em marcha sob sol escaldante, interferiam com o rigor milimétrico dos cálculos.
Era impossível ficar indiferente: inquietava, doía, arrastava para um passado que não era meu. Repetia, em silêncio:
"Não quero! Não quero!"
A minha recusa era imatura, incapaz de compreender o funcionamento de uma máquina obsoleta, alimentada pelo horror da memória. Mas estava a começar em campo aberto, e não podia falhar na leitura do projeto sem perguntar porquê.
A resposta foi breve
"Porque volto lá todas as noites!"
És capaz de voltar ontem?
Não, mas posso voltar amanhã!
Amanhã não existe!
Ontem, também não…
Se fores capaz volta ontem...
Tenho medo!
Então, apaga a luz.
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