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Não importa quanto tempo já passou. Recordo, claramente, esse dia. As flores na jarra, antes de sair, a promessa de voltar contigo, a surpresa de ver afastarem-se os cuidados constantes, o conforto da recompensa com iguais cuidados. Não importa quanto futuro possa ainda vir, enquanto me mantiver inteira, vou guardar esse dia.
O meu corpo pequeno junto ao seu peito, o xaile que nos unia, os passos pelo corredor, a porta a abrir, o pássaro na gaiola.
Não sabes de que pássaro falo?
Ouviste contar tudo o que fizeram para que eu não partisse, e sabes que podíamos nunca nos ter cruzado, mas nunca te falaram do pássaro?
Soltei-o, assim que voltei à vida. Pequena demais para reconhecer a alegoria, ainda hoje me espanta o paralelismo. Queria o pássaro para mim por isso deixei-o voar, depois chorei.
Faço as contas da minha culpa, estremeço ao perceber que só resto eu para guardar a memória desse dia. De tudo me recordo mas não és tu o centro. Uma ave, sem nome, tomou conta do que devia ser teu. Éramos poucos mas éramos tudo. Tão cedo, só ficámos nós.
Queria tanto dar-te justificação para a minha falha. Desculpa, minha irmã.
Numa das paredes da cozinha da minha avó, entre sardinhas de louça e limões vidrados, estava pendurado um prato grande e fundo onde mora, em pinceladas ingénuas, de cores que não sei descrever, um homem de olhos pequeninos e sorriso tímido.
Ó avó, aquele é mesmo o João Pestana?
Pois claro que é!
Como é que sabes? Ele não fala!
Contou-me a minha avó, que foi quem o trouxe cá para casa! E olha que é verdade! Aquela bacia era para o escoado da ceia. Quando estava pronta, chegávamos os mochos ao lar para comer e…
Não comiam à mesa!?
Até podíamos comer no chão, que tínhamos sempre a cozinha bem asseada e bem juncada!
Ah!...E depois?
Depois íamos comendo até ver o fundo à bacia, quando o…
E comiam todos do mesmo prato!?
Claro, rapariga! Que mal há nisso? Mau era se não houvesse o que comer!
Ah!...e então?
Então, o João Pestana aparecia, todo envergonhado por o termos descoberto. Ficava a olhar para nós com aqueles olhos pequeninos e dava-nos logo o sono. Era a hora de ir à deita!
Entro pé ante pé na cozinha que se fez escura e não sinto o tapete de junco fresco nem o cheiro a erva doce que só conheci na rua em dia de Ressurreição. O lume apagado junto ao lar de mármore muito gasto pelo uso, os mochos alinhados junto à parede e em cima pendurado entre as sardinhas assadas e os limões, vive o homem de olhos pequeninos e sorriso tímido.
Tudo escuro, tudo silêncio, tudo calma.
Aí, João Pestana, João Pestana, que os adormeceste a todos!
Não conto os dias, mas aproveitei umas horas livres e resolvi ir visitar o Dr. Simão. Ia, confiada na memória de uma outra consulta, já antiga, que me tinha sido agradável, e que recomendo, se alguém me pedir recomendação. Procurava, desta vez, entrevista curta, mais pelo prazer da companhia do que para aprofundar assunto delicado.
Eu bem sabia que, o ilustre médico, se tinha encerrado para estudo do seu próprio caso. Não queria, de modo nenhum, incomodar, até porque, ao que dizem, foi sem alcançar resposta satisfatória que acabou por falecer. Isso mesmo, fechou a porta e dezassete meses depois…
Foi por esta altura, a um par de frases de terminar o nosso encontro, que as ideias começaram a transviar. Dezassete meses!? Mas não foi precisamente há dezassete meses que...
Tenha paciência, Sr. Doutor! Encerra portas, abre portas, todos dentro, tudo para fora, mas com calma, que alguns têm mesmo que ficar. Tornamos ao mesmo e no oposto vê remédio, acaba por esvaziar a casa onde todos cabem para a descobrir construída por si e unicamente a si destinada! Parece-me razoável, mas deixar-se morrer ao fim de, precisamente, dezassete meses… é coisa de loucos!
Se pensa que, por uma infeliz coincidência, me apanha a falar da… Só me apetece dizer asneiras!
Bem, adiante que ainda não é desta que vou conseguir escrever alguma coisa em condições e este "pequeno" bem o merecia! Parece que o relógio da memória me atraiçoou e fui acordada pelo alarme dos pormenores.
Eu, que nem sou de contar o tempo.
Volto noutro dia!
Encontrei-a acidentalmente. Estava perdida no temporal dos comentários e encharcada de risos e sarcasmo. Tempo instável dificulta a interpretação dos sinais, e de noite cresce o medo. Procurava abrigo sem perceber que o desnorte era geral.
Foram necessários poucos minutos e nenhum paternalismo, para lhe estender um agasalho. O que custa partilhar um guarda chuva?
Reencontrei-a nos pedidos de MP. Tinha-me enviado uma imagem de São Roque acompanhada de uma frase em jeito benção.
Agradeci com sinceridade.
Desde esse dia que me presenteia, frequentemente, com gatos fofinhos, ramos de flores a piscar brilhos, velas tremeluzentes e imagens da Senhora de Fátima…
Tudo agradeço com sinceridade.
Nada mais sei da pessoa que é a A. M. Adivinho-nos completamente distintas, não somos amigas mas somos nós da mesma rede.
É o que basta!
Telefonema a solicitar a minha "especial sensibilidade" na resolução de problema delicado. Estranho a ironia e consulto o relógio. Será esta a hora de talião?
Não me mandaram ter os olhos secos e abertos e os dentes bem cerrados? Não me aconselharam a deixar crescer a barba e a falar grosso?
Os pés querem-se junto a chão, desce dos saltos! Pulso forte não pinta as unhas! Quais eram as palavras certas? "Ide-vos todos f…!"
Demora-se o telefone na emoção do pedido. Onde vou, agora, buscar a sensibilidade? Cerro os olhos e passo a mão na cara, para sentir a barba rija. Dou passos firmes, em biqueiras de aço. Cravo as unhas no peito. Sim, tenho os tomates junto ao coração. Que animal estranho me tornei...sem nunca ter deixado de ser uma mulher!
Concerteza, podem contar com a minha "especial sensibilidade"!
O rato não desdenha a comida que se oferece ao gato.
Come-a, se puder, mesmo que para isso arrisque a vida.
Não é por falta de amor à vida que o faz.
Ele conhece o trocadilho vulgar:
"Mais vale morrer do que perder a vida"
Quem o condenou a tamanha crueldade?...
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