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Assim, comunicado sem mais rodeios, Ficas com ele, e ficas bem servida, que eu já não dou conta do recado!, maior foi o efeito produzido pela secura de se dizer já não capaz, do que o abalo de ser entregue a outro, como um embrulho despachado pelo recoveiro. Por persistência, até ao algoz se pode ganhar apego. É verdade que cairia melhor, Quero aproveitar os anos que me restam, ou mais suave ainda, Vou gozar a vida, no entanto, é sabido, esse tipo de tretas não fazem o género. De qualquer forma, é possível entrever no autoproclamado declínio a tentativa de manter alguma dignidade na despedida, e em simultâneo, a vontade de assegurar a contento de todos a questão do legado.
Ultrapassada a comoção, relevada a falta, passa-se, sem mágoa, nem oposição, para as mãos do rapazinho a carvão (tanto ão, ão, ão, só pode ser cinismo) que durante anos e anos assistiu sorridente, do alto da sua sóbria moldura, ao espetáculo periódico de desmedido pavor. Músculos e tendões retesados, respiração suspensa, testa encarquilhada, triste figura. Muito triste, mesmo! É medo, sim. Chamem-lhe irracional, aconselhem com quaisquer 10 tostões de psicologia de bolso, e a coberto de um enigmático cheque recebido na infância, digam que é trauma. Seja o que for, não é paralisante, por isso lá se voltava, e volta a contragosto, como quem se entrega à tortura, tendo uma única condição: ser a primeira.
Requisito assegurado, transação aprovada. Desse dia em diante, cada visita continuaria a correr nas turbulentas águas mansas do costume, não se desse o caso do rapazinho – agora um homem bem parecido, como fazia prever o esboço, e habilitado à função, por contágio dos diplomas junto os quais o pai o pendurou – ter o péssimo costume de acolher e dispensar com um par de beijos (em caso de dúvida, o problema não está no número). Conhecemo-nos? Sim, sim, sou o do retrato!
Ainda que só cumprimento, mecanizado e despido de afeto, beijos são muito mais que beijos. Vê-los recusados dói. Pode esquadrinhar a fonte à vontade, que desta boca não leva nenhum!
Nem sobre os recomendados, ou os descobertos por acaso, nem os “no tempo certo”, ou os "antes do tempo". Isto estava destinado a ser sobre os “depois do tempo”, ou seja, os que tinham tudo para ser excelentes, mas por atraso na leitura acabaram insossos.
Espera-se compreensão, depois de
“Quando você se requebrar,
caia por cima de mim,
Caia por cima de mim,
caia por cima de mim”
é impossível, não transviar.
De qualquer forma, se é para dizer o que já foi dito, que seja asneira…
“Isto anda tudo baralhado! No meu tempo…”
“Ò senhor, no seu tempo, o quê!? O tempo não é seu, é de quem o faz!”
“Mas isto é um carnaval! Dantes…”
“Dantes, também andava você feito gaja boa, ou pensa que eu não me lembro!? Batom vermelho, salto agulha e pernas ao léu, com as meias a encher-lhe o soutien! Tudo como manda o figurino!”
“E isso, o que tem!? Olhe que eu como senhorita até era muito elegante, e..."
“ E fácil de engatar!”
“... e são três dias, para uma pessoa não morrer parva, depois acabou-se!
“Pois, pois, chega às cinzas e veste a farpela de Don Juan Conquistador. Todo bem falante, armado em espadachim de língua afiada e o paleio mais retorcido que os bigodes!
“ [...] ”
“ Então!?” Não diz nada?”
“ [...] ”
“ Entupiu? Desembuche, homem!”
“ Não é Don Juan… É ZORRO!!! Anda tudo baralhado!”
“Quando você se requebrar,
caia por cima de mim,
Caia por cima de mim,
caia por cima de mim”
Dantes usava-se colocar um cartãozinho de visita na caixa de correio, na falta de melhor, O very British neighbour, nunca, nem bom dia, nem good evening (isento de verbo). Pouco gasta dessas etiquetas, não sabe ou não gosta, muito menos por delicadeza tem precisão de lhes dar uso, já que para compensar a frieza afónica, ladra desalmadamente o bicho de roda baixa e pêlo raso que lhe faz sombra. Que fofinho! Lá vem ele a descer das alturas, tão acima e já se pode ouvir, 5 ... 4 ... 3 ... 2 ... 1… r/c, abre-se a porta do elevador, Atenção! e a piranha saltitante não faz cerimónia para cravar a dentuça no calcanhar desprevenido, Tarde demais. Ó vizinho, então a trela? Logo hoje, que fazem tanta falta as pernas para ir votar! Nem sequer so, só Sorry, e muda censura, não tivesse voltado atrás por causa do CC e a esta hora já tinha cumprido o seu dever cívico. Mas, vá lá, uma palavrinha, Tem blood? Tem, e a riqueza do dono, tubarão portátil, depois de lhe sentir o gosto, entra numa tal histeria, que a do térreo direito se vê na necessidade de acudir ao Aquiles abrindo a porta da rua, para deixar o animal ir ladrar pró diabo que o leve. É que já não há quem o possa ouvir! Que aquilo foi perrice dela para também pôr o cão a correr daqui pra fora, lá isso foi. Não é segredo para ninguém a guerra de cães e gatos, entre os dois. Assim, tratar-se a mazela com mais sossego, apesar dos repentes vingativos, tem veia humanitária. Vem o estojo de primeiros socorros, Vai arder! Pois que arda, se é para curar! E leva mais um penso rápido, não vá o calibre dos furos, que é escasso para as tripas finas, ser o bastante para as grossas. Que gracinha tão gasta! Agora descanso, que não mata mas mói. Mas ainda falta a obrigação! Siga pela viela da escola, mais curta, logo mais rápida. O quê!? Aquele matagal com ervas pelo pescoço!? Já se devia ter subido, a bater à porta da presidenta, para saber se aquilo é serviço! Isso é que não! Não vá incomodar a senhora com miudezas, em plena época de safra! De qualquer forma seria escusado, já que anda surda ao ladrar dos cães. Seja como for, está muito bem assim. Devemos estimular o crescimento das espontâneas que nos embelezam os caminhos. Mas se é passagem pública e está feita selva! Procurem-se alternativas, preserve-se a dádiva da mãe natureza! E a bicheza? Igual, claro está! O “filho” da vizinha, nas suas escapadelas higiénicas, também volta cheio de pulgas e carraças, e não é por isso que ela o vai impedir de socializar com os da colónia. E por falar em colónia, aquilo nunca mais pára de crescer! Faltam fundos, não dá para tudo, ele é ração, ele é abrigos, ele é vacinas, fica a faltar para para esterilizações. Esterilizações!? Credo! E a mãe natureza aprova? Até agradece a ajuda para manter o equilíbrio! Se houvesse mais consciência, mais gente a aderir, vivíamos num mundo melhor. Muito me conta sobre o paraíso, Pois se assim é, podia organizar-se uma quermesse, sempre se juntavam uns trocos em favor da causa. Isso já não se usa! As causas? É o que mais se usa! Vamos lá acabar com o disparate que, não tarda, o inglês há-de querer voltar a entrar e ainda lhe prega outra ferradela! Foje! Então, não ia botar? Esqueça!
Para os que imaginam um ambiente inóspito e desolador, saibam que esta Z.I. também tem os seus encantos! Um deles é amanhecer perfumada. Não, isto não é ironia para aludir aos indecifráveis efluentes gasosos, que qualquer Z.I. que se preze tem. Mas haverá outro lugar onde o almoço possa ser dispensado, porque desde das 8h da manhã se apanha uma barrigada de cheirinho a Bacalhau à Brás?
E nem dá para enjoar. Amanhã serão hambúrgueres, ou almôndegas, ou rissóis, ou qualquer outra coisa que se possa ultracongelar. Um encanto!
Esta é uma daquelas coisas que vieram do tempo da peste como consequência dos seus sucessivos confinamentos. O objetivo era, em colaboração, reunir num calendário de datas lidas, um ano completo de dias vividos nos livros.
Se a ideia, que desde logo me atraiu, parecer esquisita, a meu favor tenho o facto de não ter tido origem nesta cabeça.
O desafio dirigia-se a qualquer pessoa que goste de ler (muito), e eu até leio alguma coisa, no entanto, ao contrário dos bons leitores, não tenho por hábito sublinhar ou anotar, nem faço pausas para refletir, nem retiro lições do conteúdo. Nada que permita fazer o brilharete das citações. Sou, por isso, uma reles leitora e para contribuir para o calendário, tive que recuar a leituras antigas e folhear páginas passadas, como quem procura desesperadamente por aquela notinha de cem mil réis, guardada para um momento de aperto. Escolhi desencovar as mais esquecidas entre as esquecidas. Juntei umas quantas entradas, que não estou certa de ter partilhado.
Entretanto passou a praga, e todas as suas angústias e boas intenções. Tanto quanto sei, o calendário completo não deu em nada.
Numa leitura recente encontrei uma data, tive vontade de a somar à lista e compor o meu próprio calendário, que de tão desfalcado até dá dó.
Janeiro
“No entanto, se fôssemos irmãos, certamente seríamos gémeos, visto que, após deixar a escola do Dr. Bransby, soube acidentalmente que o meu homónimo nascera em 19 de Janeiro de 1813 - e a coincidência é notável, pois trata-se precisamente do dia em que eu próprio nasci.”
Edgar Allan Poe
William Wilson
“Toda a gente, no entanto, esteve de acordo para considerar estas adendas como cláusulas de estilo e na noite de 25 de Janeiro uma alegre agitação encheu a cidade. Para se associar à alegria geral, o prefeito deu ordem para que fosse restabelecida a iluminação do tempo em que havia saúde.”
Albert Camus
A Peste
Fevereiro
Naquele mesmo dia (3 de Fevereiro de 1893), Van voltou a gratificar o já bem azeitado porteiro a fim de que ele
respondesse a quaisquer perguntas sobre Veen, formuladas por qualquer visitante (e em especial pela viúva de um dentista que costumava passear com um cão-lagarta), com um breve grunhido de total desconhecimento. O único personagem que Van tinha esquecido de levar em conta era aquele velho patife comummente retratado como um esqueleto ou um anjo.
Vladimir Nabokov
Ada ou Ardor
Março
“A 9 de Março de 1711, um tal James Welch desceu ao meu camarote e disse-me que o comandante ordenara que eu desembarcasse. Procurei em vão discutir com ele; nem sequer me comunicou o nome do novo comandante.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Abril
“O bebé de Muriel nasceu no dia 27 de Abril. Um rapaz: Thibaut. Decididamente, Igor Dimitrievitch não conseguia habituar-se a este nome. Foi Bernard quem lhe telefonou a dar a notícia. Ele exultava do outro lado do fio:
-Tem um bisneto! Muriel suportou lindamente o parto! A criança é esplêndida: quatro quilos!”
Por mais que Igor Dimitrievitch se esforçasse por atingir uma alegria apropriada, tudo, nele, permanecia frio. Este recém-vindo ao mundo não lhe era nada. Como havia de se interessar por um ser que nem sequer veria crescer?
Henry Troyat
O bater solitário do coração
Maio
“Após três anos na expectativa de que as coisas melhorassem, aceitei uma oferta vantajosa do comandante William Prichard, que iria rumar o seu Antelope para os mares do Sul. Zarpámos de Bristol no dia 4 de Maio de 1699. De início, a travessia correu sem problemas.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Junho
“Era uma composição delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E, terminando, dizia-lhe que não era "nos esplendores das salas" ou nos "bailes febricitantes" que gostava de a ver; era ali, naqueles rochedos, “Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante”
— Que bonito, hem!
Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:
— Farol da Guia, 5 de Junho!
Mas o relógio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, meteu o poema no seio.”
Eça de Queirós
O Primo Basílio
Julho
“Foi nesse mesmo dia que Miss Hurst pôde registar no seu caderno de notas o sintoma fatal que espreitava no crescimento da exaltação amorosa de Adriano. Transcrevo:
15 de Julho de 1946
Enfim! Primeiro sinal de licantropia.”
Natália Correia
A Ilha de Circe
“Ora, na tarde de 15 de Julho de 1689, o abade de Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava à beira-mar com a senhorita de Kerkabon, sua irmã, para tomar a fresca. O prior, já um tanto avançado em idade, era um excelente eclesiástico, muito amado pelos seus paroquianos, depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe valera sobretudo grande consideração é que era o único clérigo da província que não precisava ser carregado para o leito depois de cear com os seus confrades. Sabia muito corretamente a sua teologia e, quando cansado de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais: de modo que todos diziam bem dele.”
Voltaire
O Ingénuo
(História verdadeira, tirada dos
manuscritos do padre Quesnel)
Agosto
“Por volta de 15 de Agosto tinham diminuído notavelmente em intensidade e espessura os vapores projectados para o céu. Dias depois já o terreno exalava apenas ligeira fumaça, último alento do monstro encerrado no seu túmulo de pedra.”
Júlio Verne
Da terra à lua, viagem directa em
97 horas e 20 minutos
Setembro
“O dia em que devia realizar-se o concerto foi por fim fixado: 29 de setembro.
Faltavam, pois, dez dias. Laura propôs ao marido que não os passassem em Saint-Malo. Que necessidade tinham de juntar ao perigo d'ella ser reconhecida no concerto, o risco de a reconhecerem nos ensaios?
Alfred Sirven
O Romance d'uma cantora
“O telegrama chegou ao Funchal através de Londres, dirigido ao cónego Nicolau Villa e assinado por Harry Bradshaw, médico. Dizia: “Marcos informa morte Raquel dando à luz Clara dia 29 Setembro stop Marcos criança e ama seguem Madeira dia 12 paquete Annie.”
Helena Marques
O Último Cais
Outubro
"Van recebeu este telegrama audacioso junto com o café da manhã no sábado, 10 de Outubro de 1905, no Manhattan Palace em Genebra, e naquele mesmo dia partiu para Mont Roux, no lado oposto do lago. Lá se instalou no hotel de sempre, Les Trois Cygnes. Seu concierge, um homenzinho frágil e de idade quase mítica, havia morrido durante a última estada de Van, quatro anos antes; em vez do rosto enrugado de Julien e do discreto sorriso de misteriosa cumplicidade que brilhava como uma lâmpada por trás de um pergaminho, foi a cara redonda e rosada de um ex-mensageiro, usando agora uma sobrecasaca, que deu boas-vindas a um Van velho e gordo."
Vladimir Nabokov
Ada ou Ardor
“E, antes de mais nada, ocorre ponderar que António José goza de uma reputação sobre palavra. A fogueira de 18 de outubro de 1739 iluminou-lhe a figura de maneira que o puderam ver todos os olhos; a tragédia do Sr. Magalhães vulgarizou-o entre as nossas platéias de há 40 anos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exige constância e esforço, embora de certo modo os pague. Pode-se dizer, sem erro, que ele pertence à família dos poetas cômicos, qualquer que seja o grau de parentesco, — com a circunstância que era um desperdiçado, — trocava a boa moeda do cômico pelo cobre vulgar do burlesco.”
Machado de Assis
Relíquias de Casa Velha
Novembro
“O dia 17 de Novembro de 1897, diz Brita e Kristoffer põe um braço em volta dos ombros de Brita lentamente Kristoffer e Brita começam a ir pela Estrada Pequena acima, e Brita leva Asle nos braços
0 Asle morreu a 17 de Novembro de 1897, diz Brita
E nasceu a 17 de Novembro de 1890, diz ela
e Kristoffer pára, e Brita pára, ficam a olhar para a terra
castanha, e então a porta da Casa Velha abre-se e aparece uma velha que sai e se detém na laje da entrada e Kristoffer
olha para ela
Partiu, o Asle partiu, Avó Ales, diz Kristoffer”
Jon Fosse
é a ales
“Acabei por ceder, pensando ser a melhor solução. A 24 de Novembro abandonava Lisboa a bordo de um barco mercante inglês, sem sequer indagar o nome do comandante.”
Jonathan Swift
As Viagens de Gulliver
Dezembro
“Assim abandonei a minha ilha em 19 de Dezembro de 1686, como vi nos cálculos que fiz no buque, após ter nela vivido vinte e oito anos, dois meses e dezanove dias. Fui libertado deste segundo cativeiro no mesmo dia do mês em que anteriormente fugira, numa chalupa, da escravidão dos mouros de Salem.”
Daniel Defoe
Robinson Crusoe
“Tornou-se bem poética, para mim, essa Amarante, depois de haver desaparecido com o século XIX, ao bater a meia noite de 31 de Dezembro de 1899. Nesse momento, que podemos considerar extraordinário, um estalido, como um tiro de pistola, fendeu, de lado a lado, a mesa do refeitório, pouco distante dum pequeno fogão de ferro, em volta do qual, eu, meus pais e irmãos, esperávamos ouvir, na vizinha torre de São Pedro, a última badalada das doze, aquele dia em que, no silêncio nocturno, se extinguiu, com todo o século das luzes. Entre a última badalada fatal e o
estalido da mesa, medeou apenas o tempo bastante para se distinguir um som do outro.”
Teixeira de Pascoaes
Uma fábula:
o advogado e o poeta
Feliz Ano Novo!
Passaram dez anos, há dez anos que não falamos.
A espaços, cada vez mais longos, sem aviso prévio nem causa aparente, – ainda que, por esta vez, possa aceitar como mote o fascínio dos números redondos – torna a ideia de estar ao meu alcance pôr fim ao silêncio. Esta memória rebelde há muito devia ter sido banida da lista de coisas pensáveis, no entanto refugia-se à socapa, nalguma prega remota do cérebro e, quando menos se espera, reaparece disfarçada da mais absoluta evidência.
A certeza de que o facto de não falarmos depende apenas da vontade, ou da oportunidade para o fazer, é de tal forma intensa que, numa urgência patética de reencontro, procuro nos bolsos, a chave do carro, sabendo de antemão que a tenho guardada na mala. Antes que a encontre, consulto o relógio para avaliar se o avançado da hora permite encontros imprevistos e ao constatar ser pleno dia, acabo por considerar a possibilidade de aguardar pela saída do trabalho. Para abreviar a espera, pego no telefone e pesquiso o contacto que há quase uma década foi eliminado com o objetivo de evitar a cada chamada ouvir que não está disponível, ou, pior ainda, descobrir que o número acabou por ser atribuído a uma voz que me é estranha. Somam-se os sinais de absurdo pensar. Enquanto for possível, vou ignorá-los para prolongar a ilusão de segurança que resulta das coisas garantidas: Falamos quando nos apetecer, se não for agora, é depois.
Em fundo já se faz ouvir o bulício da razão arrastando as peças para restabelecer a ordem. Até ao limite fujo, por pensamentos paralelos, ao inevitável reconstruir da realidade.
É irresistível tocar as coisas pensadas.
O prazer de encontrar números e riscos depois de ganharem forma, não se pode limitar à visão. Escusado será avisar que “tem dentes”, quando as ideias se tornam matéria palpável.
No dedo médio, ficou a picada intermitente de uma ínfima partícula de metal. Se permanecer sob a pele, ou o corpo a tolera, e com o tempo forma um pequeno calo, ou rejeita-a após uma inflamação mais ou menos grave. Uma terceira via, mais imediata, é fazê-la sair pelo mesmo caminho por onde entrou, nem que para isso seja necessário rasgar a pele.
Por medo da dor se magoa com dor maior.
Do tempo destinado às lágrimas e ao consolo de doces recordações, retenho o esforço para impedir que no futuro a memória me surpreendesse. Cada passo do último caminho foi revisitado exaustivamente nos seus mais tenebrosos pormenores. O que não se esquece, não nos poderá assaltar à traição.
Soberba, digna de misericórdia.
Dos meus dedos delicados de mulher, esperam a habilidade de retirar limalhas cravadas nos olhos. Esperam em vão, porque:
1º É obrigatório o uso de óculos de
proteção. Não arranjem confusões com os seguros!
2⁰ Pouco me importa que o enfermeiro do posto médico seja um carniceiro; Cada um no seu mister!
3⁰ O Sr. V… tem um jeito tremendo para retirar limalhas dos olhos, com uma cerda de vassoura e resolve o caso melhor que eu.
Usem os óculos, inventem o que quiserem na participação aos seguros, entendam-se com o enfermeiro e aguentem-se à bronca. Depois, agradeçam ao Sr. V…, a perícia dos seus dedos delicados… de homem.
Não falamos, porquê?
Em iguais circunstâncias, muito embora se diga que nunca são exatamente as mesmas, mantém-se assíduas conversas, juntando outra voz ao diálogo interno. Poderíamos, nós também trocar, nem que fosse, uma só palavra?
Reconheço a fórmula. Pena que tenha caído por terra o “só”, porque mais só, não posso falar, e já me vão faltando as forças para continuar a não ser digna. Subsiste o mistério da palavra: Qual?
Passaram dez anos…
Não são velhinhos (nem coitadinhos) sentados num banco de jardim, a ver passar o tempo. São dois homens a fazer planos para o futuro.
Estão a combinar porcarias (nem sujas, nem indecentes, atenção!) para pôr fim à abstinência.
Vai ser leitão, está decidido!!
Vinha desvairada, largava fogo pelas ventas e chispas pelos olhos. Saltou abaixo da carroça e uivou
– Ide, ide! Voltai sem demora para o criador!
nisto, desata a enxotar as almas todas com o cabo da gadanha
– Andor!
– Falta-te um! Qu’é dele?
A fúria que trazia enrolada ao pescoço fê-la abrir as goelas, alto e bom som
– Não é vossemecê que sabe tudo o que se passa ainda antes que aconteça!?
– Então rapariga! Que modos são esses!?
A víbora que lhe sufocava a garganta alassou as voltas.
– O respeitinho é muito lindo!
Desta vez nem tugiu nem mugiu.
– Vá, desembucha! Qu'é dele?
insistiu o pai.
Deixou-se calada, a remoer.
De mansinho, abeira-se a irmã em seu auxílio.
– Bem conhece o sucedido! Nada se passa sem que primeiro o tenha engendrado. Que proveito lhe trás, que ela reconheça a falta?
– E tu com isso!?
se as quisesse assim amigas, não as teria feito tão diferentes
– Não te metas ao barulho! Contas são contas, e é só a ela que as estou a pedir!
As irmãs trocaram um olhar intrigado. Não era a primeira vez que um ficava para trás e era certo e sabido que mais cedo ou mais tarde cá haveria de tornar. Porquê aquela teima em que lhe contasse o que houve?
– Quer então que lhe dê satisfações!? Pois aí tem: quiseram-me, mesmo sabendo quem sou, porque não haveria eu de aceitar?
– Não é daí que vem mal ao mundo! acresceu a outra, mas ele fez orelhas moucas à achega
– Deixa que fale! E depois?
- Sendo eu madrinha, quis prendar o meu afilhado e fiz do rapazola um doutor…
– Um doutor da mula russa, queres tu dizer! À conta do vosso acordo, andou ele a intrujar quantos pôde…
– Quantas trapaças há no mundo, sem que o senhor lhe ponha a mão para as corrigir!
tornou a irmã, sem o conseguir interromper
– … na primeira curva trocou-te as voltas e a cabeceira pelos pés, para te comer as papas na cabeça! Lindo serviço!
A estocada foi direta ao orgulho e ela mais não pode do que soprar com bafo gélido
– Fui enganada, bem sei!
A irmã apiedou-se dela. Quanta dor ninguém a querer, tanta solidão fugirem dela, profunda raiva tudo fazerem para a enganar. Quis abraçá-la, chegar ao seu peito imenso aquela figura descarnada e ressequida para lhe dar algum conforto. Mas não se podiam tocar. Nunca puderam. Sempre e só uma podia prevalecer sobre a outra.
Estava derrotada, mas faltava ainda que se fizesse luz
– Aceitaste ser comadre do homem que me rejeitou para padrinho, foi o que foi! Parabéns Comadre Morte!
Estava explicado o azedume do senhor pai.
Ao sábado, se os rapazes arranjavam algum biscate, o grupo ficava dividido. Juntavam uns bons trocos a fazer cargas e descargas, na substituição de cartazes publicitários, em pequenos arranjos e demolições. Tudo tarefas que podiam ser executadas tanto por uns como por outras, mas para as quais só eles eram escolhidos. Para nós era mais difícil ser bem pagas nesses trabalhos ocasionais de fim de semana. No melhor dos casos, uma cabeleireira mais concorrida podia aceitar meninas para lavar cabeças, durante a manhã, e ainda assim o valor do pagamento dependia das gorjetas.
Depois do almoço, juntavam-se as raparigas para estudar num café meio manhoso, que ficava no primeiro andar de um prédio antigo. Por não ter porta direta para a rua e nunca se saber quem se iria encontrar lá em cima, o local ganhou fama duvidosa. Na verdade, embora em certas noites lá se fizessem muitas e boas farras, a maior parte do tempo era um local sossegado, onde se podia, entre conversas banais e risinhos abafados, encontrar o silêncio suficiente para rever matérias e preparar exames. O café era mais do que o ponto de encontro e de convívio. Era uma espécie de casa comum.
Foi no final de uma dessas tardes, depois de voltarem com uma nota no bolso e disposição para pagar tostas mistas a toda a gente, que alguém deu a entender que ela estava a precisar de ter uma conversa privada comigo. Os recados enviados por portas travessas, conhecidos como “indiretas”, eram frequentes quando se queria tratar de assuntos sentimentais. Muito senhores do nosso nariz, acreditávamos ser donos de uma maturidade que ainda não tínhamos. Vivíamos em fase de transição, tentando conciliar as relações amorosas que iam surgindo, com relação geral de amizade que unia o grupo. Os amores entre amigos traziam instabilidade e eram em simultâneo uma consequência e uma ameaça à união. Pensei, por isso, que talvez ela me quisesse falar do seu interesse por algum dos rapazes, para deixar claras as suas intenções e prevenir mal-entendidos caso eu também estivesse interessada nele. A conversa insinuada, não aconteceu nesse dia nem no domingo, quando era hábito irmos todos juntos ao cinema. Pareceu-me até que evitava estar a sós comigo. Passou uma semana sem que me dissesse o que tinha a dizer.
No sábado seguinte esperei ao fundo das escadas e fui eu que pedi para falar com ela em particular, enquanto os outros subiam para o café.
[...]
Foi tempo de descoberta. Não sou em contraponto nem sigo a voz corrente, e se agora sei que não posso responder inteira ao amor que me oferecia, não foi sem conhecer que o recusei. O grupo separou-se, a amizade mantém-se.
Sabem aquelas pessoas que se agarram a um pormenor que lhes chama a atenção e depois ficam um ror de tempo especadas a olhar e a pensar sabe-se lá em quê? E já ouviram falar daquelas que quando tudo lhes interessa lhes dá a filoxera e acabam por se ir embora com a sensação de não ter visto coisa nenhuma?
Esses, talvez não sejam das vossas relações – é tudo gente esquisita, que volta vezes sem conta ao mesmo sítio, como se não tivesse mais nada com que se entreter – mas concerteza conhecem os que se queixam de não saber o que fazer nem onde ir, porque o dinheiro não dá para tudo. Seja lá pelo que for, todos gostam de uma boa borla, é aproveitar! Aos Domingos e feriados
Este é o Domingos, do Soares dos Reis
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